E se quisesse Deus que este tão ilustre
e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem
enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do
caso que me levou e trouxe de tão longe.
II. Semen
est verbum Dei.
O trigo que semeou o pregador
evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o
caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens.
Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com
delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros
e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes.
Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das
coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas
passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a
desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom
coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e
abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
III . Fazer pouco
fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da
parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma
se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer
o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o
entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando.
IV. Mas como em um pregador há tantas
qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados
em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se considerar
cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa
que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com
que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho.
V. Será porventura o estilo que hoje se
usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo
tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa
razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso
Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare.
VI. Será pela matéria ou matérias que
tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em
que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e
não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também
esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse
que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma
só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas,
porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias.
VII. Será porventura a falta de ciência que
há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e
semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma
dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão
parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz
Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o
seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda
que o furto seja de ciência.
VIII. Será finalmente a causa, que tanto há
buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam
bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era
boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos
sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas
não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de
boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no
semeador verdadeiro, que é Cristo.
IX. As palavras que tomei por tema o
dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão
pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são
palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A
palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa
terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras
dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e
os efeitos da palavra de Deus?
X. Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o
que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes,
e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e
não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a
doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso
mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister.
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