Sermão
da Sexagésima
Padre
António Vieira
Pregado
na Capela Real, no ano de 1655
Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão
ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como
vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é
do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat,
seminare. Diz Cristo que
«saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto
dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do
sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e
hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz
o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra
com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os
semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem
sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os
que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão
sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a
semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura
e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá,
achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que notais
(e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz
que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e:
propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de
Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os
pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum
ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam». As rédeas por que se
governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito
tinha impulsos para os levar,não tinha regresso para os trazer; porque sair
para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim
o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o
campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra
ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes
contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso
Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte
do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit
inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu
sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade»: Aliud
cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra
parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud
cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora
vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas
as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas
racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas
vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há
mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A
natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a
sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que
onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os
espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum
est. Ab hominibus (diz a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os
Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum
universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai a toda a criatura».
Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são
criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às
pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S.
Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a
todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os
homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens
homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam
de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda
a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do
nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara
aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá
os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado,
trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non
habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud;
trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum
est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de
doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na
boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros
comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais
tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal
houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede
com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum
aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre
afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum
est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara
o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados
sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados;
comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por
amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E
que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal
logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da
sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que
não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que
alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto
tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes,
temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de
Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum
ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o
mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou
corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois
se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que
quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e
voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do
nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira
perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta
quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais:
nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um
grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá
esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças
a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão
os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a
primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última,
e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que
uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es
pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta
quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também?
Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano
tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu
Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva
o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só
essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que
sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos
dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de
ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o
pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma
matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que
vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
II
Semen est verbum Dei
O trigo que semeou o pregador
evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o
caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens.
Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com
delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros
e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes.
Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das
coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas
passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam.
Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e
nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância,
que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da
palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz
suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão
eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz
Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com
que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara
um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de
Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com
os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de
admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores
convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes
desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e
as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas
covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações,
nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus,
como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se
resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que
é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é
hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão
poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos
hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida,
será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também
a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.
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