segunda-feira, 31 de julho de 2017

MORTE E VIDA SEVERINA - 3ºS ANOS - MATUTINO

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM ?E A QUE VAI

— O meu nome ?Severino,
como não tenho outro de pia.
Como h?muitos Severinos,
que ?santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como h?muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
h?muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: ?o Severino
da Maria do Zacarias,
l?da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
j?finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo ?que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que ?a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
?que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e at?gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.  

ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "?IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!"

— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que h?muitas horas viaja
?sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas j?não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga ?mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não d?br> nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— At?que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido ?de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali ?difícil dizer,
irmão das almas,
sempre h?uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passar?
irmãos das almas,
o que ?que acontecer?br> contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
?minha estrada.
— Bem que poder?ajudar,
irmão das almas,
?irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
— Vou eu, que a viagem ?longa,
irmãos das almas,
?muito longa a viagem
e a serra ?alta.
— Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois j?não far?na volta
a caminhada.
— Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
— Partamos enquanto ?noite,
irmão das almas,
que ?o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO

—  Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que h?muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas;
sei que h?simples arruados,
sei que h?vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
at?o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não ?fácil
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra conta,
entre uma a outra ave-maria,
h?certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias at?de donos,
e onde o p?se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele ?o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios l?de cima,
?tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas;
ouço somente ?distância
o que parece cantoria.
Ser?novena de santo,
ser?algum mês-de-Maria;
quem sabe at?se uma festa
ou uma dança não seria?

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES

— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que ?que levas...
— Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição.
— Finado Severino, etc. ...
— Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.
— Finado Severino, etc. ...

— Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves.
— Uma excelência dizendo que a hora ?hora.
— Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora.
— Duas excelências...
— ... dizendo ?a hora da plantação.
— Ajunta os carregadores...
— ... que a terra vai colher a mão.

CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMP?LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.

— Desde que estou retirando
s?a morte vejo ativa,
s?a morte deparei
e às vezes at?festiva;
s?a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que ?menos
vivida que defendida,
e ?ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas porque
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos at?que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou ser?que aqui cortando
agora minha descida
j?não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(ser?que a água destes poços
?toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
ser?que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrar?nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo h?para que decida;
primeiro ?preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não ?rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poder?me dar notícia.

DIRIGE-SE ?MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABER?br> 
— Muito bom dia, senhora,
que nessa janela est?
sabe dizer se ?possível
algum trabalho encontrar?
— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de l?
— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra m?
não h?espécie de terra
que eu não possa cultivar.
— Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por l?
— Também l?na minha terra
de terra mesmo pouco h?
mas at?a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
— Também de pouco adianta,
nem pedra h?aqui que amassar;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por l?
— Conheço todas as roças
que nesta ch?podem dar:
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caro?
— Esses roçados o banco
j?não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia l?
— Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por c?
— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra d?
diga-me ainda, compadre;
que mais fazia por l?
— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.
— Isto aqui não ?Vitória
nem ?Glória do Goit?
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
— Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear:
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
— Aqui não ?Surubim
nem Limoeiro, oxal?
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por l?
— Em qualquer das cinco tachas
de um bangu?sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
— Com a vinda das usinas
h?poucos engenhos j?
nada mais o retirante
aprendeu a fazer l?
— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprender?
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
— Mas isso então ser?tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saber?
— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por l?
comer quando havia o qu?br> e, havendo ou não, trabalhar.
— Essa vida por aqui
?coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
— J?velei muitos defuntos,
na serra ?coisa vulgar;
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
— Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem d?
— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
— Vou explicar rapidamente,
logo compreender?
como aqui a morte ?tanta,
vivo de a morte ajudar.
— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
?aqui uma profissão
trabalho tão singular?
— ? sim, uma profissão,
e a melhor de quantas h?
sou de toda a região
rezadora titular.
— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
?boa essa profissão
em que a comadre ora est?
— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade ?que não pude
queixar-me ainda de azar.
— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
— Como aqui a morte ?tanta,
s??possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para c?
S?os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultiv?los ?fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem ?preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

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