O Burrinho
Pedrês – João Guimarães Rosa
“E, ao meu macho rosado,
carregado de algodão,
preguntei: p'ra donde ia?
P'ra rodar no mutirão.”
(VELHA CANTIGA, SOLENE, DA ROÇA.)
Era um Burrinho Pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo,
Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já
fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria
preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito
mesmo a distância: no algodão bruto do pêlo - sementinhas escuras em rama rala
e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase
sempre oclusas, em constante semi-sono; e na linha, fatigada e respeitável -
uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo,
para cá, para lá, tangendo as moscas.
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado,
dado, trocado e revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera
um tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto - coisa
muito rara para essa raça de cobras - uma jararacussu, pendurada do focinho,
como linda tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua
era boa e o benzedor acudiu pronto. Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a
última intitulação, de baralho, de manilha; mas, vida a fora, por anos e anos,
outras tivera, sempre involuntariamente: Brinquinho, primeiro, ao ser brinquedo
de meninos; Rolete, em seguida, pois fora gordo, na adolescência; mais tarde,
Chico-Chato, porque o sétimo dono, que tinha essa alcunha, se esquecera, ao
negociá-lo, de ensinar ao novo comprador o nome do animal, e, na região, em
tais casos, assim sucedia; e, ainda, Capricho, visto que o novo proprietário
pensava que Chico-Chato não fosse apelido decente.
A marca-de-ferro - um coração no quarto esquerdo dianteiro -
estava meio apagada: lembrança dos ciganos, que o tinham raptado e disfarçado,
ovantes, para a primeira baldroca de estrada. Mas o roubo só rendera cadeia e
pancadas aos pândegos dos ciganos, enquanto Sete-de-Ouros voltara para a
Fazenda da Tampa, onde tudo era enorme e despropositado: três mil alqueires de
terra, toda em pastos; e o dono, o Major Saulo, de botas e esporas, corpulento,
quase um obeso, de olhos verdes, misterioso, que só com o olhar mandava um boi
bravo se ir de castigo, e que ria, sempre ria - riso grosso, quando irado; riso
fino, quando alegre; e riso mudo, de normal.
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a
história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a
existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à
meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale
do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.
O burrinho permanecia na coberta, teso, sonolento e perpendicular
ao cocho, apesar de estar o cocho de-todo vazio. Apenas, quando ele cabeceava,
soprava no ar um resto de poeira de- farelo. Então, dilatava ainda mais as crateras
das ventas, e projetava o beiço de cima, como um focinho de anta, e depois o de
baixo, muito flácido, com finas falripas, deixadas na pele barbeada de fresco.
E, como os dois cavos sobre as órbitas eram bem um par de óculos puxado para a
testa, Sete-de-Ouros parecia ainda mais velho. Velho e sábio: não mostrava
sequer sinais de bicheiras; que ele preferia evitar inúteis riscos e o dano de
pastar na orilha dos capões, onde vegeta o cafezinho; com outras ervas
venenosas, e onde fazem vôo, zumbidoras e mui comadres, a mosca do berne, a
lucília verde, a varejeira rajada, e mais aquela que usa barriga azul.
De que fosse bem tratado, discordar não havia, pois lhe faltavam
carrapichos ou carrapatos, na crina - reta, curta e levantada, como uma escova
de dentes. Agora, para sempre aposentado, sim, que ele não estava, não. Tanto,
que uma trinca de pisaduras lhe enfeitava o lombo, e que João Manico teve ordem expressa de montá-lo, naquela
manhã. Mas, disto último, o burrinho não recebera ainda aviso nenhum.
Para ser um dia de chuva, só faltava mesmo que caísse água. Manhã
noiteira, sem sol, com uma umidade de melar por dentro as roupas da gente. A
serra neblinava, açucarada, e lá pelas cabeceiras o tempo ainda devia de estar
pior.
Sete-de-Ouros, uma das patas meio flectida, riscava o chão com o
rebordo do casco desferrado, que lhe rematava o pezinho de Borralheira. E abria
os olhos, de vez em quando, para os currais, de todos os tamanhos, em frente ao
casarão da fazenda. Dois ou três deles mexiam, de tanto boi.
Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a
mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as
meias-raças plebéias dos campos-gerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio
Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do
Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com
as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios,
vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanhos tirando a rubros, pitangas
com longes pretos; betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com
polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias
concêntricas no pelame - curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento,
como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces
talhadas em granito impuro.
Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodando
remoinhos: sempre um vaivém, os focinhos babosos apontando, e as caudas, que
não cessam de espanejar com as vassourinhas. Somam-se. Buscam-se. O crioulo
barbeludo, anguloso, rumina, estático, sobre os maus aprumos, e gosta de espiar
o céu, além, com os olhos de teor morno, salientes. O espúrio gyr balança a
bossa, cresce a cabeçorra, vestindo os lados da cara com as orelhas, e berra
rouco, chamando a vaca malabar, jogada para o outro extremo do cercado, ou o
guzerate seu primo, que acode à mesma nostalgia hereditária de bois sagrados,
trazidos dos pascigos hindus do Coromândel ou do Travancor. Mudo chamado leva o
garrote moço a impelir toda uma fileira, até conseguir aproximar-se de outro,
que ele antes nunca viu, mas junto do qual, e somente, poderá sentir-se bem. E
quando o caracu-pelixado solta seus mugidos de nariz fechado, começando por um
eme e prolongando-se em rangidos de porteira velha, respondem-lhe o lamento
frouxo do pé-duro e o berro em buzina, bem sustido e claro, do curraleiro
barbatão.
De vez em quando, rebenta um tumulto maior.
O pantaneiro mascarado, de embornal branco e quatrólhos, nasceu,
há três anos, na campina sem cercas. Não tem marca de ferro, não perdeu a
virilidade, e faz menos de seis meses que enxergou gente pela primeira vez. Por
isso, pensa que tem direito a mais espaço. Anda à roda e ataca, espetando o
touro sertanejo, que encurva o arcabouço de bisonte, franjando um leque de
dobras no cachaço, e resolve mudar de vizinhança. Devagar, teimoso, força o
caminho, como sabem fazer boamente os bois: põe todo o peso do corpo na frente
e nas pontas das hastes, e abre bem o compasso das patas dianteiras, enterradas
até aos garroes no chão mole, sustentando a conquista de cada centímetro. O
boieco china se espanta, e trepa na garupa do franqueiro, que foge, tentando
mergulhar na massa. Um de cernelha corcovada, boi sanga sapiranga, se irrita
com os grampos que lhe arpoam a barriga, e golpeia com a anca, aos recuões. A
vaca bruxa contra-esbarra e passa avante o choque, calcando o focinho no
toutiço do mocho. Empinam-se os cangotes, retesam-se os fios dos lombos em
sela, espremem-se os quartos musculosos, mocotós derrapam na lama, dançam no ar
os perigalhos, o barro espirra, engavetam-se os magotes, se escoram,
escouceiam. Acolá, nas cercas, - dando de encontro às réguas de landi, às vigas
de guarantã e aos esteios de aroeira - carnes quadradas estrondam. E pululam,
entrechocados, emaranhados, os cornos - longos, curtos, rombos, achatados,
pontudos como estiletes, arqueados, pendentes, pandos, com uma duas três
curvaturas, formando ângulos de todos os graus com os eixos das frontes, mesmo
retorcidos para trás que nem chavelhos, mesmo espetados para diante como presas
de elefante, mas, no mais, erguidos: em meia-lua, em esgalhos de cacto, em
barras de cruz, em braços de âncora, em crossas de candelabro, em forquilhas de
pau morto, em puãs de caranguejo, em ornatos de satanás, em liras sem cordas -
tudo estralejando que nem um fim de queimada, quando há moitas de taboca fina
fazendo ilhas no capinzal.
Agora, se alertam, porque pressentem o corisco. Esperam que a
trovoada bata pilão, na grota longe, e então se sobrechegam e se agitam,
recomeçando os espiralados deslocamentos.
Enfarado de assistir a tais violências, Sete-de-Ouros fecha os
olhos. Rosna engasgado. Entorna o frontispício. E, cabisbaixo, volta a
cochilar. Todo calma, renúncia e força não usada. O hálito largo. As orelhas
peludas, fendidas por diante, como duas mal enroladas folhas secas. A modorra,
que o leva a reservatórios profundos. As castanhas incompletas das pernas. As
imponentes ganachas. E o estreme alheamento de animal emancipado, de híbrido
infecundo, sem sexo e sem amor.
Mas para ele não havia possível sossego. O cavalo preto de
Benevides - soreiro fogoso, de pescoço recurvo em cauda de galo - desatou-se do
moirão e vem desalojar o burrico da sua coxia. Está arreado; a jereba
urucuiana, bicorcovada, fá-lo parecer uma sorte de camelo raso; os estribos de
madeira batem-lhe os flancos; e arrasta entre as mãos a ponta do cabresto. Mas,
ainda assim, não pode admitir, tão perto, a existência de um mísero mu. Então,
sem ao menos verificar o que há, o matungo de Zé Grande espanca o tabique da
coberta, o amarilho de Silvino saracoteia empinado, quase partindo o látego, e
o poldro pampa, de finca-pé, relincha escandalosamente.
Mas Sete-de-Ouros detesta conflitos. Não espera que o garanhão
murzelo volva a garupa para despejar-lhe duplo coice mergulhante, com vigorosa
simetria. Que também, do outro lado, se assoma o poldro pampa, espalhando a
crina e arreganhando os beiços, doido para morder. Sete-de-Ouros se faz
pequeno. Escoa-se entre as duas feras. Desliza. E pega o passo pelo pátio, a
meio trote e em linha reta, possivelmente pensando: - Quanto exagero que há!...
Passa rente aos bois-de-carro - pesados eunucos de argolas nos
chifres, que remastigam, subalternos, como se cada um trouxesse ainda ao
pescoço a canga, e que mesmo disjungidos se mantêm paralelos, dois a dois.
Corta ao meio o grupo de vacas leiteiras, já ordenhadas, tranqüilas, com as
crias ao pé. E desvia-se apenas da Açucena. Mas, também, qualquer pessoa faria
o mesmo, os vaqueiros fariam o mesmo, o Major Saulo faria o mesmo, pois a
Açucena deu à luz, há dois dias, um bezerrinho muito galante, e é bem capaz de
uma brutalidade sem aviso prévio e de cabeça torta, pegando com uma guampa
entre as costelas e a outra por volta do umbigo, com o que, contado ainda o
impacto da marrada, crível é que o homem mais virtuoso do mundo possa ser
atirado a seis metros de distância, e a toda a velocidade, com alças de
intestino penduradas e muito sangue de pulmão à vista.
E Sete-de-Ouros, que sabia do ponto onde se estar mais sem
tumulto, veio encostar o corpo nos pilares da varanda. Deu de cabeça, para
lamber, veloz, o peito, onde a cauda não alcançava. Depois, esticou o
sobrebeiço em toco de tromba e trouxe-o ao rés da poeira, soprando o chão.
Mas tinha cometido um erro. O primeiro engano seu nesse dia. O
equívoco que decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos
burros. Porque: “quem é visto é lembrado”, e o Major Saulo estava ali:
- Ara, veja, louvado tu seja! Hô-hô... Meu compadre Sete-de-Ouros
está velho... Mas ainda pode agüentar uma viagem, vez em quando... Arreia este
burro também, Francolim!
- Sim, senhor, seu Major. Mas, o senhor está falando sério, ou é
por brincar?
- Me disseram que isto é sério. Fecha a cara, Francolim!
Com a risada do Major, Sete-de-Ouros velou os olhos, desgostoso,
mesmo sem saber que eram donas de duras as circunstâncias. Francolim viera
contar que não havia montadas que chegassem: abrira-se um rombo na cerca do
fundo do pasto-do-açude, por onde quase toda a cavalhada varara durante a
noite; a esta hora, já teriam vadeado o córrego e descambado a serra, e
andariam longe, certo no Brejal, lambendo a terra sempre úmida do barreiro,
junto com os bichos do campo e com os bichos do mato.
O Major dera de taca no parapeito, muitas vezes, alumiando raiva
nos olhos verdes e enchendo o barrigão de riso. Depois, voltou as costas ao
camarada, e, fazendo festas à cachorrinha Sua-Cara, que pulara para cima do
banco, começou a falar vagaroso e alto, mas sem destampatório, meio rindo e meio
bravo, que era o pior:
- Tenho vaqueiros, que são bons violeiros... Tenho cavalos
ladinos, para furarem tapumes. Hô-hô... Devagar eu uso, depressa eu pago...
Todo-o-mundo aqui vale o feijão que come... Hô-hô... E hoje, com um tempo
destes e a gente atrasada...
Afinal, mandou Sua-Cara descer do banco, e se desvirou, de
repente, encarando Francolim:
- Quantos animais ficaram, mulato mestre meu secretário?
- Primeiro que todos, o cardão do senhor, seu Major. Silvino,
Benevides, e Leofredo, têm os cavalos lá deles... Zé Grande também, eu
também... Tem o baio de seu Tonico... Tem o alazão... E o Rio-Grande. Eu até já
estou achando que eles chegam, seu Major.
E Francolim baixava os olhos, sisudo, com muita disciplina de
fisionomía.
- Francolim, você hoje está analfabeto. Pensa mais, Francolim!
- Tem também... Só se for o cavalo de silhão de sã dona Cota, mais
o poldro pampa... É, mas esse não serve: o poldro já está com carretéis nas
munhecas, mas ainda não acabou de ser bem repassado.
- O poldro vai, Francolim.
- Então, dão. Assim, estão todos.
- Conta nos dedos, Francolim. Têm de ir dez, fora nós dois.
- Falta um cavalo, seu Major!
- Francolim, você acertou depressa demais...
E o Major Saulo foi até à porta, para espiar o relógio da parede
da sala. Maria Camélia chegou com a cafeteira e uma caneca. - “Quente mesmo?
para velho?” - “De pelar, seu Major!” Sempre com a mão esquerda alisando a
barriga, o Major Saulo chupava um gole, suspirava, ria e chuchurreava outro. E
a preta e Francolim, certos, a um tempo, sorriam, riam e ficavam sérios outra
vez. - “Dá o resto para o Francolim, mas sem soprar, Maria!” E o Major, já de
cigarro na boca, se debruçava no parapeito, pensando alto:
-... Boi para encher dois trens, e mais as vacas que vão ficar no
arraial... Para a gente sair, ainda é cedo... Mas, melhor que chovesse agora,
no modo de dar uma estiada com folga... nessa hora foi que Sete-de-Ouros se
veio apropinquando, brando.
- Arreia este burro também, Francolim!
- Sim senhor, seu Major. Só que o burrinho está pisado, e quase
que não enxerga mais...
- Que manuel-não-enxerga, Francolim! - e o Major Sauló parou,
pensando,,com um dedo, enérgico, rodante dentro do nariz; mas, sem mais, se
iluminou: - São só quatro léguas: o João Manico, que é o mais leviano, pode ir
nele. Há-há... Agora, Francolim, vá-s'embora, que eu já estou com muita
preguiça de você.
Mas a preta Maria Camélia se foi, ligeira, levando o decreto do
Major Saulo de novidade para a cozinha, onde arranchavam ou labutavam três
meninas, quatro moças e duas velhas, afora gatos e cachorros que saíam e
entravam; e logo se pôs aceso o mundo: - O João Manico vai tocar boiada no
burrinho! Imagina só, meu-deus-do-céu, que graça!...
Porém, cá fora, a vaqueirama começava o corre-corre, pega-pega,
arreia-arreia, aos gritos benditos de confusão. - “Vamos, gente, pessoal, quem
vai na frente bebe a água limpa!” Voz pomposa, Raymundão, o branco de cabelo de
negro:- “Sinoca, larga o que tem dono, que esse coxonilho é o meu!” Com Sinoca,
das Taquaras, que já teve pai rico: - “Desinvoca, Leofredo, fasta o seu macho
para lá!” Daí Leofredo, magrelo, de cara bexiguenta, que se prepara, cantando:
- “Eu vou dar a despedida, como deu o bem-te-vi... “ E Tote, homem sisudo,
irmão de Silvino por parte de mãe, puxando o alazão, que não é mau: - “Ara, só,
Bastião, com esse arreio de caçambas é que eu não vou, tocando sino de
igreja... “ Já Silvino, cara má, cuspindo nas mãos para dar um nó no rabo do
seu café-com-leite de crinas alvas, grande esparramador de lama. E mais
Sebastião, o capataz, pulando em cima do Rio-Grande - cavalo de casa, com uma
andadura macia de automóvel, tão ligeira que ultrapassa o picado dos outros
animais e chega a ser quase um meio-galope. E o bom Zé Grande, mexendo com a
boca sem falar, para acabar de enrolar o laço no arção deitado do bastos
paulista, e coçando um afago na tábua-do-pescoço do compacto Cata-Brasa,
cavalão herdado, bastardo, pesado de diante como um muar e de cabeça volumosa,
mas doutor para conhecer no campo as negaças da rês brava e para se esbarrar para
a derrubada, de seda ou de vara. E Benevides, já montado - no Cabiúna manteúdo,
animal fino, de frente alçada e pescoço leve, que dispensa rabicho mas reclama
o peitoral, e é um de estimação, nutrido a lavagens de cozinha e rapadura, o
qual não pára um instante a cabeça, porque é o mais bonito de todos, com
direito de ser serrador, e está sôfrego por correr; - Benevides, baiano
importante, que tem os dentes limados em ponta, e é o único a usar roupa de
couro de três peças, além do chapelão, que todos têm. Mas Sinoca, novamente, se
assentando meio de-banda, por deboche de si mesmo, em cima do Amor-Perfeito,
palafrém tordilho de Dona Maricota, que estranha o serigote, de tanto afeito ao
sílhão:
- “Cavalo manso de moça só se encosta em tamborete. .. “
- “O, gente, ô gente!” - “Desassa a tua mandioca!” E Juca
Bananeira, que dá uma palmada na anca do Belmonte - cavalo do menino da casa,
desbocado, viciado e inventador de modas - e sobe, com excelência, perguntando:
- Eh, e o Badu? Qu'é do Badu? !...
- Francolim, Francolim! - chama o Major Saulo, caminhando
sul-norte e norte-sul, na varanda, conversando com a cachorrinha.
- Não está aqui, não, seu Major. .. - anuncia de lá Benevides,
que, com simples pressão de pernas nas abas da sela papuda, faz o corcel preto
revirar nos cambitos; e logo ajuda a chamar:
- Ooó, Francolim!
As vacas fogem para os fundos do eirado, com os bezerrinhos aos
pinotes. Caracoleiam os cavalos, com os cavaleiros, em giros de picadeiros. E
Sua-Cara correu para latir, brava, no topo da escada.
- Badu, ó Badu!
- Já vem ele ali, Juca, foi se despedir da namorada...
Entim surge Francolim, vindo da varanda do lado, mastigando
qualquer coisa.
- Fui ver se tudo vai ficar em ordem, lá por dentro, seu Major.
- Olha para mim, Francolim: “joá com flor formosa não garante
terra boa!“... Arrancha aqui, perto das minhas vistas.
E o Major Saulo aponta com a taca, na direção dos currais cheios:
- Boiada e tanto! Nem bem dois meses no meloso, vinte dias no
jaraguá, e está aí esta primeira leva, berrando bomba de graúda. Nunca vi uma
cabeceira-do-gado tão escolhida assim.
- Isto, seu Major. E só gordura honesta de bois. A gente aqui não
faz roubo.
- E que é que eu tenho com os santos-óleos?
- Sim senhor, seu Major... Estou dizendo é que não é vantagem, no
seu Ernesto, eles terem embarcado a cabeceira antes de nós, na outra semana,
porque eu agora estou sabendo que eles lá são mestres de dar sal com enxofre ao
gado, para engordar depressa, gordura de mentira, de inchação!
- Cala a boca, Francolim. Estão todos assanhados, não cabendo no
curral.. .
Quatrocentas e muitas reses, lotação de dois trens-debois. Na
véspera, o Major Saulo saíra pela invernada, com os campeiros, ele escolhendo,
eles apartando. O peso era calculado a olho. O preço fora discutido e combinado,
em telegramas. E já chegara o aviso do agente: os especiais estavam esperando,
na estação do arraial.
- Vá lavar sua cara, Francolim.
- Lavar cachorro a esta hora, seu Major?
- Não. Lavar sua cara mesma, de você. Há-há... Tempo de trabalho
entrou, Sebastião...
Sebastião subira a escada e se chegara. Com polainas amarelas e
pés descalços. Concordou. Ia dizer qualquer coisa, umas fechou a boca a tempo,
porque o Major Saulo continuava olhando para a aglomeração de bois.
Nos pastos de engorda, ainda havia milhares deles, e até junho
duraria o êxodo dos rebanhos de corte. E, como acontecia o mesmo em todas as
fazendas de ali próximo, e, com ligeiras variantes, nas muitas outras
constelações de fazendas, escantilhadas em torno das estaçõezinhas daquele
trecho, era a mobilização anual da fauna mugidora e guampuda, com trens e mais
trens correndo, vagões repletos, atochados, consignados a Sítio e Santa Cruz.
Depois, nos meados da seca, os pastos se esvaziavam, e os boiadeiros tinham de
espalhar-se em direção aos longínquos centros de cria, para comprar e
arrebanhar gado magro. Pelas queimadas, já estariam de volta. Repouso. Primeiro
sal. Primeiro pasto. Ração de sal todos os meses, na lua nova. E, pronto,
recomeçar.
- Vai cair chuvinha fina, mas as enchentes ainda vão ser bravas.
Este ano acaba em seis!... Pode ajuntar o povo, Sebastião. Chama Zé Grande.
Mas, que é aquilo, Francolim?
Quando Badu chegou, com muito atraso, das montadas só restava o
poldro pampa. Já arreado, livre das tamancas nos ramilhos, mantém-se quieto, a
grosso ver, mas lançando de si estremeções e sobressaltos, como um grande corpo
elétrico.
- Há-há...
- Silvino está com ódio do Badu...
E Badu está acabando de saber que tem de montar o poldro. Não
reclama. Fica ressabiado, observando... por causa que Silvino também gosta da
moça, mas a moça não gostou dele mais...
- Esquece os casos, Francolim!... Ver se o Badu entende de doma:
lá vai montar...
Badu vem ao animal. Verifica se a cilha está bem apertada. Ajeita,
por um são caminho de idéias, o seu próprio correão da cintura. Pula
de-escancha no arreio, e o poldro - hop plá! - esconde o rabo e funga e
desanda, num estardalhaço de peixe fera pego no anzol. Se empinou, dá um
de-ancas, se empina; saiu de lado, ajudando as munhecas, sopra e bufa, se abre e
fecha, bate crina, parece que vai disparar.
O Major Saulo assiste, impassível. Só no verde dos seus olhos é
que pula o menino do riso. Mas Francolim não se contém:
- Silvino assoviou no ouvido do bicho... Eu reparei, seu Major! Se
o senhor mandar, eu vou lá, pôr autoridade nessa gente...
- Caiu, que eu vi!
Era um super-salto magistral, com todas as patas no ar e a cabeça
se encostando na cauda, por debaixo do resto. Mas Badu não caiu: perdendo os
estribos, aperta os joelhos na cabeça da jereba, iça o poldro nas rédeas e
acalcanha nele as rosetas, gritando: - Desce a serra, pedidor!
- Há-há... Grudou as pernas no santantônio, firme! Está aí,
Francolim, você ainda acredita no que vê?
- Sim senhor, seu Major... Sou prevenido. Mas, tem outra coisa que
eu careço de dar parte ao senhor... Faz um passo para lá, Zé Grande, que eu
preciso de um particular urgente aqui com o patrão.
- Que é que é, Francolim Fonseca?
- Francolim Ferreira, seu Major .. O que é, é que eu sei, no
certo, mas mesmo no certo, que Silvino vai matar o Badu, hoje.
- Na minha Fazenda ninguém mata outro. Dá risada, Francolim!
- Sim senhor, mas o caso não é de brinquedo, seu Major... Silvino
quer beber o sangue do Badu... Se o senhor fornece ordem, eu dou logo voz de
prisão no Silvino, no arraial, depois do embarque...
- Escuta, Francolim: “não é nas pintas da vaca que se mede o leite
e a espuma!”... Vamos embora, de uma vez.
E o Major Saulo desce a escada da varanda, com a corte de
Francolim e Zé Grande, e vem devagar, a passos pesados, para o esteio das
argolas.
- Puxa o cardão, Francolim. O' João Manico, Manicão meu compadre,
que é que você está esperando, para enjambrar essa outra azêmola! - e o Major
sobe no cardão, que, mesmo tão grande, quase se abate e encosta a barriga no
chão.
Já encabrestado, Sete-de-Duros não está disposto a entregar-se:
“Vai, mas custa!”, quando outros o irritam, é a divisa de um burricoque ancião.
Com rapidez, suas orelhas passam à postura vertical, enquanto acompanha o
homem, com um olho de esguelha, a fito de não errar o coice.?
João Manico anda-lhe à roda, aos resmungos. Põe-lhe o baixeiro.
Depois, pelo certo, antes de arrear, bate na cabeça do burrinho, como Deus
manda. Sete-de-Duros se esquiva à clássica: estira o queixo e se acaçapa,
derreando o traseiro e fazendo o arreio cair no chão. Então o vaqueiro se
convence de que precisa de mostrar melhores modos:
- Eh, burrinho, acerta comigo, meu negro.
Assim, Sete-de-Ouros concorda. João Manico passa-lhe a mão
espalmada no pescoço, e ele gosta e recebe bem a manta de pita. Já não reage,
conformado. Dá apenas o repuxão habitual da barriga, contraindo bruscamente a
pele, do cilhadouro às ilhargas e das ilhargas ao cilhadouro. Encrespa e
desencrespa também o couro do pescoço. E acelera as pancadas da cauda, no
vai-e-vem bulhento de um espanador. Aoaceitar o freio, arreganha demais os
beiços num tremendo sorriso de dentes amarelos. Mas logo regressa ao eterno
cochilo,, até que João Manico tenta montar.
- Ara viva! Está na hora, João Manico meu compadre. Você e o
burrinho vão bem, porque são os dois mais velhos o mais valentes daqui...
Convém mais você ir indo atrás, à toa. Deixa para ajudar na hora do embarque...
E o Setede-Ouros é velho, mas é um burro bom, de gênio... Você não sabe que um
burro vale mais do que um cavalo, Manico?...
- Compadre seô Major, para se viajar o dia inteiro, em marcha de
estrada, estou mesmo com o senhor. Mas, para
tocar boiada, eh, Deus me livre que eu quero um burrinho assim!...
- Mais coragem, Manico, sem
gemer. .. “Suspiro de vaca não
arranca estaca!”... Mas, que é que você está olhando tanto, Francolim?
É, acolá, no outro extremo do eirado, Juca Bananeira, que brinca
de mexer tranças na crineira de Belmonte, e conversa com Badu. - “Você faz mal,
de andar assim desarmado de arma! Silvino é onça-tigre. Todo-o-mundo sabe que
ele está esperando hora. .. “ Aí Badu, atravessando na frente do arreio a longa
vara de ferrão, e mostrando o poldro, agora quietado, exausto de pular, só diz:
- “Comigo não tem quem tem! Eu também, quando vejo aquele, fico logo amigo da
minha faca. Mas Silvino é medroso, mole, está sempre em véspera de coisa
nenhuma!” - “Aí fiando! Quem tem inimigo não dorme!. .. “ E Juca Bananeira vai
para a eloqüência, porque confia tanto na moleza de Silvino quanto um
tem-farinha-aí acredita na imobilidade de uma cobracipó, ou uma cobra-cipó crê
na lonjura alta de uma acauã. Mas Badu guina o poldro, vindo cá para perto do
canto onde João Manico conversa ainda com o Major.
Sete-de-Ouros espetou as orelhas para a frente. É calmo e
comodista, mas de maneira alguma honesto. Quando João Manico monta, ele não
pula, por preguiça. Mas tem o requinte de escoucear o estribo direito, primeiro
com a pata de diante, depois com a de trás, cruzando fogos.
- Não falei, compadre seô Major?!... Bicho medonho! Burro não
amansa nunca de-todo, só se acostuma!...
Mas o Major Saulo largava, sem responder, rindo já longe, rumo aos
vaqueiros: lá junto à cerca, com os cavalos formados em fileira, como um
esquadrão de lanceiros.
- “Olha só, vai trovejar. .. “ E Leofredo mostrava o gado: todos
inquietos, olhos ansiosos, orelhas erectas, batendo os parênteses das galhas
altas. - “Não é trovoada não. São eles que estão adivinhando que a gente está
na horinha de sair. .. “ Mas, nem bem Sinoca terminava, e já, morro abaixo, chão
a dentro, trambulhavam, emendados, três trons de trovões. Aí, a multidão se
revolveu, instantânea, e uma onda de corpos cresceu, pesada, quebrou-se num dos
lados do curral e refluiu para a banda oposta. Em pânico, procuravam a saída.
- Vi-i! Vão dar o que fazer! Vigia ali: tem muito crioulo caraço,
caçando gente para arremeter... Ei, Zé Grande?...
Zé Grande passa a correia do berrante a tiracolo, e continua
calado, observando. Para a sabença do gado, ele é o melhor vaqueiro da Tampa,
homem ledor de todos os sestros e nequícias do bicho boi. Só pelo assim do
marruaz bulir ou estacionar, mede ele o seu grau de má fúria, calcula a
potência de arremesso, e adivinha para que lado será mais dos ataques, e qual a
pata de apoio, o giro dos grampos, e o tempo de volta para a segunda ofensiva.
- Ixe, ixe! Muito boi pesado. São os de Fortaleza. Só curraleiro
alevantado, nação de boi arisco...
- Olha aquela aratanha araçá, que às há-de-as! Está empurrando os
outros, para poder ficar no largo sozinha; não deixa nenhum se encostar. É para
curro, vaca roda-saia...
- Parece com a que pegou você mais o Josias, Tote?
Mas eu já disse... Já jurei que não foi culpa minha, e não foi
mesmo. A vaca fumaça estava com a cria no meio do curral, fungando forte e
investindo até no vento... Josias falou comigo: “Vamos dar uma topada, para ver
se ela tem mesmo coragem conversada.” Eu disse: “Vamos, mas com sossego.” Só aí
é que aconteceu que nós esquecemos de combinar, em antes, quem era que esperava
e quem era que tirava... Ficamos: eu da banda de cá, ele ali. A'pois, primeiro
que a gente pulasse a cerca para dentro, já a diaba da vaquinha estava de lá,
herege, tomando conta do que a gente queria querer fazer!...
- Não era hora de facilitar.. .
- Mas foi. Mal a gente tinha botado os pés no chão, o ela riscou
de ar, sem negaça, frechada, desmanchando o poder da gente espiar... Nós todos
dois entesamos de lado, para tirar, e
ninguém não escorou. Foi a conta. Ela deu o tapa, não achou firmeza, e remou as
varas para fora... Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga... Mas virou
logo para a minha banda, e veio me visitar, me catando com os chifres e me
jogando baba na cara. Eu corri. Não tinha mesmo de correr? !...
- Com vara boa, de pau-d'arco, na mão de bom vaqueiro?
- Mas, minha vara, ela tinha mandado longe. Não falei?... Josias
foi o mais desfeliz, porque foi jogado para tudo quanto era lado, com a monstra
sapateando em cima dele e chifrando... Mas ela só não me pegou também, porque,
com o fezuê, até o bezerrinho levou susto e atravessou na frente, entre nós
dois, espinoteando, com a caudinha na cacunda. Quando eu ia pular a cerca, ela
ainda me alcançou, na sola dum pé: juntou com a força do pulo que eu ia dando,
e eu caí, por riba do monte de achas de aroeira que estava lá... Culpa eu tive?...
Má-sorte do companheiro. Era o dia dele, o meu não era!...
- Ei, vamos mudar de contar coisas tristes, que seu Major não
gosta.. .
Major Saulo cavalga para cá, acabando de fazer a volta completa
dos currais, com Zé Grande e Sebastião dos lados, e Francolim.
- Agora, que é que há e que é que não há, Zé Grande?
- Eu acho que a boiada vai bem, seô Major. Não vão dar muito
trabalho, porque estão bem gordos, e com preguiça de fazer desordem. Boi bravo,
tem muitos, mas isso o senhor pode deixar por conta da gente... Pé-duro, tem
poucos... Agora, eu acho que tem alguns que a gente devia de apartar. Olha, seô
Major: aquele laranjo agarrotado está só procurande beira de cerca. E o marruaz
crioulo, esse ali cor de canela, do pêlo arrepiado, que assusta até com o
batido de rabo dos outros...
Pois eles dois hão de querer escapulir, e é um perigo os outros
estourarem atrás. Aquele camurça, de focinho preto até por dentro das ventas,
está cego de um olho...
- Estará mesmo?
- Agaranto. Olha agora: todos estão gostando de bater nele, da
banda cega. Não chega no arraial sem estar muito machucado... E, se a gente
descuidar, ele, atoinha, atoinha, pega a querer pinchar para fora da estrada,
do lado do olho são... Aquela vaca moura, também... É maligna, está judiando com
os outros, à traição. O resto está em ordem.
- Caso com tua fala, Zé Grande. Sinoca, mais Tote: vão separar
aqueles quatro, e trazer outros, do curral pequeno, para repor no lugar. Mas,
Virgem! Não viram aquela prenda? E ia como boi de corte? Vigia se é capão ou
não...
E o Major Saulo indicava, mesmo na beira do estacado, um boi
esguio, preto-azulado, azulego; não: azul asa-de-gralha, água longe, lagoa
funda, céu destapado - uma tinta compacta, despejada do chanfro às sobre-unhas
e escorrendo, de volta, dos garrões ao topete - concolor, azulíssimo.
- É inteiro... Não, é roncolho. Mas bonito como um bicho de
Deus!...
- É só de longe, seu Major. De perto, ele é de cor mais trivial...
- E que me importa? Não quero esse boi para ser Francolim, que não
sai de perto de mim... Há-há... Aparta, já, também. E vamos, vamos com Deus,
minha gente. Dá a saída, Bastião. Ver com isso, compadre Manico!
Pobre burrico Sete-de-Ouros, que não tem culpa de ser duro de
boca, nem de ter o centro-de-gravidade avançado para o trem anterior do
corpo...
- Toca, gente! Ligeiro! Faz parede!
Sebastião entrou no curral. Zé Grande, o guieiro, sopra no
berrante. Os outros se põem em duas alas divergentes - fazem paredes, formando
a xiringa. Sinoca escancara a porteira, que fica segurando. Leofredo, o
contador, reclama:
- Apertem mais, p'ra o gado sair fino, gente! Ajusta, Juca, tu não
sabe fazer o gado? Ei, um!...
É o primeiro jacto de uma represa. Saltou uma vaca china,
estabanada, olhando para os lados ainda indecisa. - Dois! - Pula um pé-duro
mofino, como veado perseguido. Passam todos. Três, quatro, cinco. Dez. Quinze.
Vinte. Trinta.
- Hê boi! Hê boi! Hê boi-hê boi-he boi!...
- Cinqüenta! Sessenta!
- Rebate esse bicho bezerro. Pra um lado! Não presta, não pesa
nada.
- Oitenta! Cem!
- Cerca o mestiço da Uberaba. Topa, Tote!... Eh bicho bronco... Chifre torto, orelhudo,
desinquieto e de tundá!... ! - exclamam os vaqueiros, aplaudindo um auroque de
anatomia e macicez esplêndidas, que avançou querendo agredir.
- Estampa de boi brioso. Quando corre, bate caixa, quando anda,
amassa o chão!
Agora é o jorro, unido, de bois enlameados, com as ancas
emplastadas de sujeira verde, comprimidos, empinados, propelindo-se, levando-se
de cambulhada, num atropelo estrugente. Os flanqueadores recuam, alargando o
beco.
- Eh, boi!... Eh, boi! .. .
- Quatrocentos e cinqüenta... e sessenta. Pronto, seu Major.
Corta de lado o Major Saulo, envolto na capa larga, comandando:
- Dianta, Leofredo! Da banda de lá, Badu!
Vão, à frente, Zé Grande, tocando o berrante, e Sebastião, que
solta a toda a garganta o primeiro aboio, como um bárbaro refrão:
- Eêêê, bo-oi!...
Escalonados, do flanco direito, Leofredo, Tote, Sinoca e
Benevides. Da banda esquerda, Badu, Juca Bananeira, Silvino e Raymundão.
- Boiada boa!. .. - proclama o Major, zarpando.
- Burrico miserável!. .. - desabafa João Manico, cravando as
esporas nos vazios de Sete-de-Ouros, que abana a cabeça, amolece as orelhas, e
arranca, nada macio, no seu viageiro assendeirado, de ângulo escasso, pouca
bulha e queda pronta.
Caniço de magro, com um boné de jóquei no crânio, lá vai
Francolim, logo atrás do Major.
- Eh, boi!... Eh, boi...
E, ao trompear intercadente do berrante, já ecoam as canções:
“O Curvelo vale um conto,
Cordisburgo um conto e cem.
Mas as Lages não têm preço,
Porque lá mora o meu bem. .. “
Nenhum
perigo, por ora, com os dois lados da estrada tapados pelas cercas. Mas o gado
gordo, na marcha contraída, se desordena em turbulências. Ainda não abaixaram
as cabeças, e o trote é duro, sob vez de aguilhoadas e gritos.
- Mais depressa, é para esmoer? ! - ralha o Major.
- Boiada boa!...
Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos,
lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cometos,
bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros., .. E os tocos
da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi comalão.. .
- P'ra trás, boi-vaca!
- Repele Juca... Viu a brabeza dos olhos? Vai com sangue no
cangote...
- Só ruindade e mais ruindade, de em-desde o redemunho da testa
até na volta da pá!. Este eu não vou perder de olho, que ele é boi
espirrador...
Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou ruminam
outros mil e mais bois. Mas os vaqueiros não esmorecem nos eias e cantigas,
porque a boiada ainda tem passagens inquietantes: alarga-se e recomprime-se,
sem motivo, e mesmo dentro da multidão movediça há giros, estranhos, que não os
deslocamentos normais do gado em marcha - quando sempre alguns disputam a
colocação na vanguarda, outros procuram o centro, e muitos se deixam levar,
empurrados, sobrenadando quase, com os mais fracos rolando para os lados e os-
mais pesados tardando para trás, no coice da procissão.
- Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...
As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros,
batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de
couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado
junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos,
querência dos pastos de lá do sertão...
“Um boi preto, um boi pintado,
cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.”
Boi
bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá
de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai
varando...
“Todo passarinh' do mato
tem seu pio diferente.
Cantiga de amor doído
não carece ter rompante... “
Pouco a pouco; porém, os rostos se desempanam e os homens tomam
gesto de repouso nas selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil,
só está quase pronta a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho inteiro
- centopeia -, mesmo prestes assim para surpresas más.
- Tchou!... Tchou!... Eh, booôi!...
E, agora, pronta de todo está ela ficando, cá que cada vaqueiro
pega o balanço de busto, sem-querer e imitativo, e que os cavalos gingam
bovinamente. Devagar, mal percebido, vão sugados todos pelo rebanho trovejante
- pata a pata, casco a casco, soca soca, fasta vento, rola e trota,
cabisbaixos, mexe lama, pela estrada, chifres no ar...
A boiada vai, como um navio.
- Põe p'ra lá, marroeiro! -
Investiu?
- Quase...
Coisa que ele é acabanado e de cupim, que nem zebu…
- Fosse meu, não ia para o corte. Bonito mesmo, desempenado. Até
me lembro do Calundu....
- Qual esse, Raymundão?
- O Calundu? Pois era um zebu daquela idade. O maior que eu já vi.
- Guzerá?
- Ach'que.
- Baio, como o Paulatão?
- Cor de céu que vem chuva. Berrava rouco, de fazer respeito...
- Todo zebu se impõe.
- Aquele mais. Que marruaz!
- Por que?
- Parecia manso e custava para se enchouriçar. Mas, um dia, brigou
com o reprodutor dos Oliveiras, zebu também, dos pintados. Ferraram luta sem
parar, por bem duas horas, e o Calundu derrubou o outro, quase morto, no
desbarrancado.
- E para se lidar?
- Não era qualquer vaqueiro chegado de fora, não. Tinha mania: não
batia em gente a-pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. De longe, ele já
sabia que vinha algum, porque encostava um ouvido no chão, para escutar.
Olha, que vamos entrar no cerradão. Tento aí, p'ra eles não se
espalharem para os lados!
- Abre a guia! Afrouxa o coice! - grita Juca Bananeira,
transmitindo o comando de Sebastião.
Os costaneiros se afastam, e aboiam prolongado:
- E-ê-ê-ê-ê, boi...
Enquanto os da frente incitam o marche-marche dos quadrúpedes:
- Eh, boi-vaca! Tchou! Tchou! Tchou!... Ei! Ei!...
E o rebanho se estira e alonga, reduzindo as fileiras, como
soldados a passarem, em movimento, de uma formação de grande fundo para coluna
de pelotão.
- Mundo velho, ventania! - brada Juca Bananeira, sustando o cavalo
para apreciar a desfilada dos bois taroleiros, correndo de aspas altas: o
débito fluido das patas, o turbilhão de ângulos, o balouço dos perfis em quina,
e o jogo veloz dos omoplatas oblíquos.
- Arreda, bruto, mamolengo!
Um veio de lá, jogado de empuxe, e baqueou meio ajoelhado,
justo-justo esbarrando no cavalo de Raymundão.
Tropeiam, agora, socornando e arfando, mas os alcantis
encapelados, eriçados de pontas, guardam uma fidelidade de ritmos, escorrendo
estrada avante. E o chapadão atroa, à percussão debulhada dos mil oitocentos e
quarenta cascos de unha dupla.
Sopra sempre o guia no seu corno, porém, e os outros insistem no
canto arrastado, tão plangente, que os bois vão cadenciando por ele o tropel.
- A chuva está aí está caindo, Raymundão. Mas, vigia aquele
garrotão preto, que vai ali, babando em cima da casa dos outros. O Calundu era
importante assim?
- Vou contar. Espera, vamos fazer uma mamparra: vamos encostar os
cavalos, e trancar o gado, para ele só dar trabalho da banda do povo de lá e a
gente poder conversar com sossego... Assim. Oh, diabo, você é mestre, e eu
querendo ensinar você a fazer trecho...
- Que história foi? O Calundu matou alguém?
- Depois. O que eu vou contar foi no Retiro... Eu tinha ido lá,
buscar uma vaca fronteira, da filha de seu Major. A vaquinha tinha parido na
beirada da lagoa, e jacaré comeu a cria. Por isso ela estava emperreada, tinha
virado bicho-do-mato, correndo atrás de qualquer barulhinho, arremetendo à toa.
Me deu tanto trabalho, que eu tive de dormir lá, no rancho de perto dos
coqueiros... De noite, saiu uma lua rodoleira, que aluminava até passeio de
pulga no chão. Minha cachorra paqueira, que não gostava de parar sem o que
fazer, ficou vagabundeando por si, e pegou a acuar. Algum tatu rabo-mole, por
ai. .. - eu pensei. Fui ver... Oi, segura, siô!
Um boizão fumaça bufou na orelha do poldro de Badu, que refugou -
arranco para trás, para a esquerda e para baixo, entortando o pescoço,
rapidíssimo. Badu balanceou, bateu mão na giba da jereba, e esteve pendente
meio segundo, fazendo força para não ir sela abaixo, sob os cascos em disparada
dos bois. Mas foi ao outro lado, em pulo seguro, e voltou ao assento, volteando
com a ligeireza de um atamã do Ural.
-- Foi nada. Conta a história, Raymundão.
- Pois então, quando fui espiar o que a minha cachorra Zeferina
estava estranhando...
- Oh gués! Isso é nome de cachorro?
- Foi por vingança que eu pus, quando minha mulher Zeferina me
largou... Mas, ai pois, não imagina o que eu vi! Dei mesmo numa baixada de
pasto, e afundei quase no meio das vacas. Já disse que estava lindeza de
claridade de noite... E de repente eu vi que o gado estava cheio de idéia,
começando um manejo esquisito. Mandei a cachorrinha calar a boca, e então pude
apreciar direito: as vacas, desinquietas, estavam se ajuntando, se amontoando
num bolo, empurrando os bezerros para o meio, apertando, todas encalcando, de
modo que aquilo tudo, espremido, parecia uma rodeira grande, rodando e ficando
cada vez mais pequena, sem parar de rodar...
- E daí?
- Espera, olha a chuva descendo o morro. Eli, água do céu para
cheirar gostoso, cheiro de novidade!... É da fina... Mas, então, o Calundu, que
era o garrote delas, ainda parecia ser mais graúdo do que era mesmo, rodeando
as vacas, meio dando as costas para a manada, assim de cabeça em pé! E aí eu
ouvi um miado longe, e me alembrei daquela onça preta que estava salteando
estrago no gado de seu Quilitano, nas Lages, e no Saco-da-Grota. Onção de todo
o tamanho...
- Ei, gente, olha o pé-d'água!
Chegava a chuva, branquejante, farfalhando rumorosa, vinda de trás
e não de cima, de carreira. Alcançou a boiada, enrolando-a toda em bruma e
continuando corrida além. Os vultos dos bois pareciam crescer no nevoeiro,
virando sombras esguias, de reptis desdebuxados, informes, com o esguicho das
bátegas espirrando dos costados. O pisoteio teve um tom mole, de corrida no
bagaço. E houve mugidos. Mas, roufenho, o berrante trombeteou de novo, mais
forte, na frente.
- Canta, gente!
E, aí, soltaram a chuva de verdade: chuva pesada, despejada, um
vasto vapor opaco. Era como se a gente passasse por debaixo de cachoeira. E
desenxergaram-se, de todo, os bois. Mas os vaqueiros cantavam juntos:
“Chove, chuva, choverá,
Santa Clara a clarear
Santa Justa há-de justar
Santo Antônio manda o sol
P'ra enxugar o meu lençol... “
- Oh, diabo, custou que melhorou. A gente nem estava podendo tomar
fôlego, em baixo desse dilúvio...
-
Mas, e depois, a onça, Raymundão?
- A onça, o povo dizia que ela tinha vindo de longe. Onça-tigre
macha, das do mato-grosso... Onça é bicho doido para caminhar, e que anda só de
noite, campeando o que sangrar... Pois, naquela ocasião, eu estava crente que
ela estava a muitas léguas de lá onde é que eu estava... Pensei que andasse
pelo Maquiné...
- Mas, e o zebu?
- Bom, quando eu ouvi o miado, fui para perto de um angico novo,
por causa que eu estava sem arma de fogo, e onça não trepa em pau fino - se diz
- que ela não tem poder de abarcar com as munhecas... Aquilo, eu pedia a Deus
para mandar ela não vir do meu lado... Fiquei alegre, quando escutei melhor o
miado da bicha-fera, lá por trás do tabocal... E o Calundu cavacava o chão e
bufava, com uma raiva tão medonha, que aí fiquei mais animado, por ele estar me
protegendo, e até tive pena da pobre da oncinha!...
- E depois? A tigre chegou no marruaz?
- Perde essa moda. Zebu é zebu mesmo, e marruaz é garrote, dos
outros... Mas, aí, eu vi a cangussu, vi o vulto dela, porque era lua cheia,
noite clara, já falei.
- Urrando assanhada, Raymundão? Eu já vi uma suassurana rompente,
uma vez...
- Não é capaz. Onde foi que já sé viu onça tocaiar criação desse
jeito? Aquilo ela vem é feito gato quando quer pegar passarinho: deitada,
escorregando devagarinho, com a barriga no chão, numa maciota, só com o rabo
bulindo... Os olhos é que alumiam verde, que nem vagalume bagudo...
- Mas, pulou no cangote do zebu?
Que óte! Que ú!... Você acredita que ela não teve coragem?!
Naquela hora, nem o capeta não era gente de chegar no guzerá velho-de-guerra.
Nem toureiro afamado, nem vaqueiro bom, Mulatinho Campista, Viriato mais
Salathiel, coisa nenhuma... E, quem chegasse, era só mesmo por ter vontade de
morrer suicidado sem querer...
-- Ixe!
Mas o Calundu cada vez ia ficando mais enjerizado e mais maludo,
ensaiando para ficar doido, chamando a onça para o largo e xingando todo nome
feio que tem. Aquilo, eu fui bobeando de espiar tanto para ele, como que nunca
eu não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! A corcunda ia até lá em baixo,
no lombo, e, na volta, passava do lugar seu dela e vinha pôr chapéu na testa do
bichão. Cruz! E até a lua começou a
alumiar o Calundu mais do que as outras coisas, por respeito...
- Eu estou quase não acreditando mais, Raymundão...
Bom, pode ter sido também uma visão minha, não duvido nada... Mas,
então foi que eu fiquei sabendo que tem também anjo-da-guarda de onça!... Você
sabe que, quando a tigre arma o bote, é porque ela já olhou tudo o que tinha de
olhar, e já pensou tudo o que tinha de pensar, e aí nunca que ela deixa de dar
o pulo, não é? Pois, nesse dia, a cangussu de certo que imaginou mais um
tiquinho, porque ela desmanchou o dela, andando de rastro para trás um pedaço
bom. Depois, correu para longe, sem um miado, e foi-s'embora.
Onça esperta!...
- Ói, que é?
- Estamos chegando no córrego. Vamos lá...
- Vigia só como a cheia está alta. A água quando dando na metade
do ingazeiro!... Qu'é do barranco? Sumiu, está vendo?...
- Virgem! E agaranto que em até de noite ainda sobe mais... A lua
não é boa. .. Ano acabando em seis...
- A enchente está vindo de desde as cabeceiras: senão não descia
tanta folha de buriti...
- Pois diz-se que tem quatro dias que lá nas nascentes não pára de
chover.
Chega Francolim, de galope, com um recado do Major para Sebastião:
- É para esperar um pouco, e não apertarem o gado na travessia...
- Está feio. Mas isto aqui não se compara com a passagem das
boiadas no Jequitinhonha.. .
- Conheço. Atravessei aquele, com seiscentas cabeças de gado da
Bahia... O mais difícil não é pela largura, mas porque é rio bravo, de
correnteza... A gente tinha de tocar adiante um lote de bois mansos, mais
acostumados, que não tivessem medo. Alguns até alugavam uns, ensinados, de um
sitiante da beira do rio. . . E a gente cruzava no batelão, vigiando a boiada
nadar...
Chega o Major, chamando por Sebastião...
- Estou vendo que o vau agora está pior do que o resto.
Melhor era destorcer mais para baixo, onde deve de estar dando
mais pé...
- Pé já não dá mesmo, em lugar nenhum, seô Major. E está
desbarrancado, lá na outra beirada, e não tem saidor . Melhor por aqui mesmo, patrão.
- Bem, mas vamos com paciência! Aqui já tem morrido muita gente...
Estacionados na rampa, esperavam que o gado tomasse coragem. A
chuvinha agora era um chuvisco rarefeito; mas três regos de enxurrada desciam
também, borbotando e roncando, com brutalidades fluviais. E a enchente crescia.
O caudal, barrento, oscilava aos golpes, como uma coisa viva, parecendo às
vezes que baixava, para subir mais. Um pau do mato - ramada, tronco e raízes -
derivava tal e qual uma piroga embandeirada em amarelo; esbarrou na copa do
tingui, que se submergia fixa e hemisférica; depois, virou de bordo, retomou
rumo, e foi águas abaixo.
Tremendo, este córrego da Fome! Em tempo de paz, não passa de um
chuí chocho - um fio. Mas, dezembro vindo, com o dar das longas chuvas,
torna-se mais perigoso que um rio grande, que sempre guarda seus remansos,
praias rasas e segmentos de retardada correnteza.
Entupindo o declive do morro, a boiada permanecia parada. Muitos
mugiam.
- Cou! Cou! Tou! Tou!...
Os primeiros se chegam para a beirada. Zé Grande entra n'água, no
Cata-Brasa, que pega a nadar. E, já no meio da torrente, o guieiro ainda se
volta, tocando o berrante. Um junqueira longicórnio estica o pescoço fino,
arrebita o focinho, e pula, de rabo desfraldado. Então, há que os cocurutos
estremecem, para a frente e depois para trás. Despencou-se mais um cacho de
reses. Chapinham com estrupido, os mocotós golpeando como puxavantes. Perderam
pé: os corpos desaparecem, ficam de fora somente as beiçamas, as ventas
polposas, palpando ar, e os pares de chifres, como tentáculos de caramujos
aquáticos. E aí toda a manada se precipita, com muita pressa, transpondo a
enchente brava do riacho da Fome.
O Major Saulo, que foi o derradeiro - depois de Sete-de-Ouros com
João Manico, e mesmo atrás de Francolim - logo os alcança, contudo, pouco para
lá da passagem.
- Viva, meu povo, não se perdeu nenhum!... Francolim, vai dizer a
Sebastião que toquem pelo caminho de baixo, no fim da vargem... E você,
compadre Manico, que tal com o meu burrinho sem velhice? Escuta, Manico, nesse
passo, nesta marcha, escrevo que ele agüenta viagem de mais de um dia. É mesmo,
seô Major meu compadre. Esperto ele é, pois faz que agüenta, só para poder
contrariar a gente. E certo: Sete-de-Ouros dava para trás, incomovível,
desaceitando argumentos e lambadas de piraí. Que, também, burro que se preza
não corre desembestado, como um qualquer cavalo, a não ser na vez de justa
pressa, a serviço do rei ou em caso de sete razões. E já bastante era a firmeza
com que se escorava nas munhecas, sem bambeio nem falseio - ploque-plofe,
desferrado - ganhando sempre a melhor trilha.
- Mas, meu compadre, vocês vão indo tão bem, tão sem confusão...
- Sim senhor, seô Major. Eu sei que o senhor está se rindo é por saúde sua, não é por
debochar de mim. . .Mas, assim, para não ajudar em nada desta vida, eu não
careciade ter vindo. Estou como ovo depois de dúzia... E o burinho, também, se
ele tivesse morrido transanteontem, não
estava fazendo falta a ninguém!
Mudo e mouco vai Sete-de-Ouros, no seu passo curto de
introvertido, pondo, com precisão milimétrica, no rasto das patas da frente as
mimosas patas de trás.
- Escuta uma pergunta séria, meu compadre João Manico: você acha
que burro é burro?
- Seô Major meu compadre, isso até é que eu não acho, não. Sei que
eles são ladinos demais …
Bem que Sete-de-Ouros se inventa, sempre no seu. Não a praça larga
do claro, nem o cavouco do sono: só um remanso, pouso de pausa, com as pestanas
meando os olhos,o mundo de fora feito um sossego, coado na quase-sombra, e, de
dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com as lhas - espelhos da alma -
tremulando, tais ponteiros de quadrante, aos episódios para estrada, pela ponte
nebulosa por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem coversa, sem perguntas,
cada um no seu lugar, devagar, por todos séculos e seculórios, mansamente amém.
- Não podemos tocar tão ligeiro como a coragem, Manico, o burrinho
não pode com isto.
O rebanho se espraiou, lento, na várzea sobreaguada, só uma ou
outra rês correndo, por entre as moitas de sarãs, no galope bovino
desconjuntado e ondulado, arrancando avante com as patas muito abertas, jogando
os quartos para cima.
- Oô-ah!... Beleza de gado!... Quase...
- Formosura, seô Major!
-... quase que cada com o cabelo fino e os meneios todos -
cimeiros, alcatra coberta e cordão. Mas, desencosta essa tristeza, João Manico
meu compadre, que eu acho que eu acho que estou guardando, ao daqui a pouco, um
espanto bom para você. Só que esse Francolim deu para ir e não voltar... Sei
porquê, que senão nem tinha mandado aquele recado. Ele foi por uma banda e vai
voltar pela outra, e vem me contar paçoca de novidades, tudo o que os vaqueiros
estão converdo e fazendo, ou deixando de fazer.
Olho e ouvido, andando por longe, é bom para dono e patrão...
Mas nem sempre traz sossego, e muita vez é pior.
Beleza nos bois ele não vê, mas já estou ouvindo o que o Francolim
vem falar: que os meus homens estão mamparreando, indo de prosa... Há-há há...
Sei disso, Manico, mas é coisa que mal não dá, porque, se eles têm seu
divertimento, ficam mais marinheiros, na hora de fazer força...
Mas o rapaz só serve para isso: para vigiar o pessoal. É gosto…
- Seu Francolim é de culatra, seô Major. Então, hoje, com aquele
barrete doido na cabeça, feito fantasma...
- Há-há, Manico velho! Escuta: “para bezerro mal desmamado, cauda
de vaca é maminha”... Esta vida é engraçada... Galinha, tem de muita cor, mas
todo ovo é branco.
Você sabe escrever e ler, meu compadre João Manico?
- Assim mais assim, com os erros todos e muita demora, até há uns
dois anos atrás eu ainda era homem para pôr algum bilhete no papel...
- Pois eu não. Nunca estive em escola, sentado não aprendi nada
desta vida. Você sabe que eu não sei. Mas, cada ano que passa, eu vou ganhando
mais dinheiro, comprando mais terras, pondo mais bois nas invernadas. Nào sei
fazer conta de tabuada, tenho até enjôo disso... Nunca assentei o que eu ganho
ou o que eu gasto. O dinheiro passa como água no córrego, mas deixa poços
cheios, nas beiras. Gosto de caminhar no escuro, João Manico, meu irmão!
Em Deus estando ajudando, é bom, meu compadre “seô”Major.
- Também não tomo a reza dos outros, não desfaço na valia deles...
- De nenhum jeito, e eu posso ir junto!... Todo o mundo, aqui,
trabalha sem arrocho... Só no falar de obedecer é que todos têm medo do
senhor...
- Capaz que seja, Manicão? Será?
- Isso. Uns acham que é porque o seô Major espera boi bravo, a-pé,
sem ter vara, só de chicote na mão e soprando no focinho do que vem...
- Mas eu gosto dos bois, Manico, ponho amor neles...
A pois. Eu sei, de mim, que será por causa de nunca se ter certeza
do que é que o meu compadre está pensando ou vai falar, que sai sempre o
diverso do que a gente esperou... Só vejo que esse povo vaqueiro todo tem mais
medo de um pito do senhor do que da chifrada de um garrote, comparando sem
quebrar seu respeito, meu compadre seô Major.
- Escuta, Manico: é bom a gente ver tudo de longe. Assim como nós
dois aqui vamos indo... Pelo rastro, no chão, a gente sabe de muita coisa que
com a boiada vai acontecendo. Você também é bom rastreador, eu sei. Olha, o que
eu entendo das pessoas, foi com o traquejo dos bois que eu aprendi...
- Estou pensando, seô Major.
- Mas, nem sempre, Manico, não vá o meu compadre imaginar...
Hôhô... Aqui, por falar na hora, chegou o prazo de se espiar, tirando a tampa
da panela. Estamos mas estamos para sair da vargem, no dar entrada no caminho
estreito, que foi onde a vaquinha
apatacada no ano passado deu para ruim... Atrasou tudo, por bem meia
hora, não deixando nenhum avançar e jogando três bois no barranco, chifrados à
traição...
- Lugar zangado, esse um.
- Galopa comigo, Manico, vamos lá, que eu quero ver!... Mais
ligeiro, compadre, mais no mais!... Promete uma coisa pra esse burrinho, p'ra
ele correr!... Assim!...
- Afrouxou.
- Ara' ora, uê, que é aquilo? Vaqueiro a cavalo e correndo com
medo de boi?!... Hó-hó... Anda, Manico... Espera. O resto da boiada vai em
passo cheio... Ei, o Badu vai topar!
E - o que ia sendo e ia-se vendo - era
que: quando Badu ouviu algazarra e voltou o rosto, foi para ver Silvino vir,
galope afoito, e se desviar só a poucos passos, deixando-o com o boi, que vinha
atrás. O poldro pampa se espavoriu para fora da cena. Badu apanhou a vara.
O touro estacou. Era zebuno e enorme. O vaqueiro, a pé, não lhe
inspirava o menor respeito.
Cresceu, sacudindo cabeça, cocuruto e cachaço, como um sistema de
torres superpostas. Encurtou-se, encolhendo os quartos dianteiros e inclinando
a testa. E veio. E nem tempo de mudar dois passos, obrigando-o a alterar, em pleno
avanço, a mira do arremesso: Badu mal pôde quadrar-se, em guarda - a vara
sustida como uma enxada, mão esquerda a dois palmos da aguilhada, a direita bem
lá atrás.
- Põe p'ra lá, vaca velha!
Agora! O ferrão toca o chanfro e resvala para a bochecha. Por
centímetros! Badu nega o corpo, descaindo de banda. Evita chifre e choque, mas
mesmo o raspão já era um trompaço: mal-governou-se e quase cai, enquanto o
touro afunda adiante, sopraz, num rufar de tambor.
É hora!
E Badu faz vira-cara, que o touro voltava, cru, em ofensiva
sagital.
Hora de não olhar o imenso vulto montanhoso, máquina de
trem-de-ferro - terra tremendo e ar tremendo - para não ver a cabeça,
vertiginosa, que aumenta de volume, com um esboço giratório e mil maldades na
carranca. Olhar para a ponta da vara, apenas...
- Põe p'ra lá, marroeiro!
Preciso. O aguilhão feriu o focinho, a vara jogou como um braço de
biela, e já Badu empurrou o perfil do boi, tirando o corpo para a esquerda, num
pulo de pés juntos.
- Passa, corisco! Aratanha!
Passou, com ventania e estrondo.
- Topada certa! Boa vara e bom vaqueiro meu!...
Já o touro, tendo ido a poucos passos, mugiu curto e voltava, com
sua fúria no mais, mais. Tomara a dor e entrava em Badu outra vez.
- Ru, boi! - Quebrando o ímpeto da acometida, o ferro se espetou
abaixo do entre-olhos, na rampa da cara. Arqueado, o marruá cresceu, subiu na
vara, patas no ar, no raro e horrendo empinado vacum, rosnando e roncando. O
pau vergou, elástico - um segundo - mas Badu recargou, teso, e foi e veio com a
vara, em mão de vaqueiro com dez anos de lida nos currais do sertão.
- Assim, cabrito! Não é só com força, é com jeito, que a gente
topa boi!
E o zebu-assu, leso o equilíbrio, trambolhou de todo, que nem
mancomado, e desmoronou-se, com todas as suas cúpulas.
- Ei, rei! Vai-te ajuntar com os outros! Some-se a boiada, ao
longe.
O Major Saulo e João Manico acendem os cigarros. Sete-de-Ouros
ainda arfa cansaço, mais vivo o bater cadenciado das ilhargas.
- Seu Major! Com o que eu vou lhe contar que se deu, o senhor vai
precisar de tomar uma autoridade de providência, urgência... - clama, de
chegada, Francolim, que ainda foi com o grupo de vaqueiros, meio caminho, e
voltou.
- Toma fôlego, Francolim!
- Sério é, seu Major...
- Espera por mini, Francolim. Primeiro eu preciso de você, e desse
cavalo seu. Apeia e troca de montada com o João Manico. Isso mesmo, assim.
Bobagem, Manico, me agradece amanhã! Vai para lá, pela mão direita, e manda o
Raymundão aqui... E você, Francolim, não é para ficar segurando o burrinho pela
arreata, com pouco caso. É para montar e me acompanhar. E não espora o meu
Sete-de-Ouros, que ele é animal de estimação!
- Só mesmo pelo respeito meu do senhor, seu Major.
- Você é meu camarada de confiança, Francolim. Tem mais
responsabilidade de ajudar, também...
- Isto, sim, dou meu pescoço! Em serviço do senhor, carrego
pedras, seu Major. Só peço é ordem para o João Manico me dar de novo meu
cavalinho, na entrada do arraial, para não ficar feio eu, como ajudante do
senhor, o povo me ver amontado neste burro esmoralizado... sem querer com isso
ofender, por ser criação de que o senhor gosta...
- Garantido, Francolim. Mas, você perdeu a pressa de contar...
- Sem brincadeira, seu Major. .. O que houve, eu vi, tudo...
- Todo o mundo viu, Francolim.
- Vi desde o começo, seu Major: o Badu teve de apertar a cilha do
animal... saiu para um lado, desapeou, e estava dando as costas para a
boiada...
- Ruim, Francolim. Vaqueiro de verdade não faz isso.
- Mas, primeiro, ele quis ficar de frente, só que o poldro é
desinquieto e andou de roda...
- Está certo, Francolim. O poldro ainda não gosta de ver os bois,
queria espiar para o lado do campo, achou melhor...
- Pois foi assim que o Badu aproveitou para ajustar a cilha, e
estava só prestando atenção no jeito de se destorcer de algum coice... E então
foi que o Silvino atiçou raiva no marruaz... Escolheu o mais graúdo de todos...
Sacudiu lenço vermelho... Em tempo de deixar a boiada atrapalhar, que eu vi, só
que o Raymundão tomou conta! E aí ele galopou p'r'avante no Badu, trazendo o
marruaz bufando no rabo do cavalo, por querer alguém, seu Major... Foi de
maldade, foi crime, pela metade ao menos, seu Major. De propósito... Pois
Silvino, quando chegou no companheiro, esquinou o galope para uma banda, de
repente, e deixou o marruaz investir...
- O resto eu vi, Francolim. Mas os dois não brigaram, e tudo
acabou bem, como eu gosto que acabe.
- Desculpe, seu Major, mas ainda não acabou, não... Eu acho que
ainda está até começando. O senhor não leve a mal eu dizer, mas a gente devia de
determinar alguma energia nesses dois, porque, se não, o Silvino vai matar o
Badu, hoje!
- E se o Badu matar Silvino, Francolim?
- Olha o Raymundão aqui... O senhor pergunte.
- Vai ficando aí por trás, devagar, que o burrico já penou muito e
precisa de ir só a passo...
- Vamos aqui, Raymundão, emparelha o cavalo com o meu, para me
fazer companhia um trecho... Que é que você achou das topadas do Badu?
- O companheiro esteve firme, seô Major.
- O marruaz é mau, aquele... Eu acho que ele é um da derradeira ponta
de gado que veio do Pompéu. Boi bruto. Será que ele viu Silvino assoar nariz
com lenço vermelho?
- Não é capaz, seô Major. Nenhum de nós não anda com pano dessa
cor...
- Regra boa, Raymundão... Vermelho é cor de dor de cabeça... Vamos
tocar mais ligeiro, quero ir vendo os bois... Mas o Silvino foi escaramuçado, a
cavalo. Como foi?
- Não vi direito, seô Major. Só pude ver o Badu topando. Marruaz
desse, que vem riscando o chão com a cara, eu gosto de topar no pescoço... Cada
um tem uma maneira...
- E é mesmo. Você ainda se lembra da primeira topada sua,
Raymundão?
- Ah, seô Major, foi um boi retaco, que caminhava na gente por
gosto e investia de olho aberto e cabeça alteada, feito vaca... O senhor sabe,
esse é o pior que tem, para se escorar.... Meu pai, que era vaqueiro mestre,
achou que era o dia de experimentar minha força... Dei certo, na regra, graças
a Deus...
- Você pensou alguma coisa na hora, Raymundão? Que foi que você
sentiu?
- Só, na horinha em que o bicho partiu em mim, eu achei que ele
era grande demais, e pensei que, de em-antes, eu nunca tinha visto um boi
grande assim, no meio dos outros... Mas isso foi assim num átimo, porque depois
as mãos e- o corpo da gente mexem por si, e eu acho que até a vara se
governa... Quando dei fé, a festa tinha acabado, e meu pai estava dando um
cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na
vista dele...
E foi falando: - “Meu filho, tu nasceu para vaqueiro, agora eu
sei”...
- Velho inteiro! E a bambeza, depois?
- Não tive, seô Major. Só fome muita, isso sim. O pior foi que eu
piscava, e afundei a cabeça n'água fria, mas sem valer, porque fiquei o dia com
aquele boi dentro das minhas vistas, que nem um retrato, que doía até... Era um
caraúno cara-larga, espácio, com sete anos de idade, com os cinco anéis no pé
do chifre...
-- Começo bom, Raymundão. Escuta: eu dou valor aos meus vaqueiros,
e o que eles contam de si eu aprecio. Pessoal meu é gente escolhida...
- Bondade sua, seô Major.
- Converso na lei, Raymundão. Nunca me dão trabalho... Só de vez
em quando é que um quer me saudar com a mão canhota... Agora, tem essa história
de Silvino com o Badu... Você vê algum perigo dessa briga arruinar?
- Eu acho que não, seô Major. A raiva deles tinha de ter, mas tem
também de se esfriar... O Badu veio para a Fazenda faz só dois meses, e tomou a
namorada do Silvino... Silvino, em vez de fazer cara para o outro lado, e dar
ao desprezo, começou a pirraçar... Eu cá não quero dar sentença, porque todos
os dois têm razão e nenhum não tem, também.
- E a moça, é bonita?
- Serve. Só que é meio caolha, seô Major. Mas, agora por último,
como o casamento já está marcado, o Badu só pensa nisso, e não quer saber de
briga nenhuma.
- Mas, e Silvino?
- Também já sossegou, seô Major. A ver, porque ele contou que está
pensando em voltar para o Curimataí, terra dele, e se casar também, com outra
noiva que tem lá...
Ainda ontem, ele vendeu as quatro vacas que tinha...
- Vendeu? Agora que sobrou campo do melhor, e que sei que uma
estava para dar cria?
- Essa foi a quatrocentos... As outras, a trezentos e cinqüenta e
trezentos...
- Do de baixo! Por esse preço, a obrigação dele era de vender para
mim, que dou pasto de graça, e só cobro à meia quando passam de doze cabeças...
Mesmo que ele levasse aquele gadinho para a terra dele, fazia outro negocio...
- Avoamento, seô Major, sem ser por mal. Ele tinha pressa,
decerto, e se acanhou de falar com o senhor a respeito.
- Deve de ter sido isso, Raymundão. Mas, mal-feito é mal feito!...
E o que foi mais que ele disse?
- Só isso, que falou, seô Major. Mesmo ele hoje estava muito
quieto, gostando de saber das coisas que eu estive contando ao Badu também...
- É bom a gente dar uma prosa pequena, enquanto se toca boiada. E
o que foi que você esteve contando, Raymundão?
- Conversa boba, seô Major... Era a respeito do Calundu...
- Zebu terrível. Matou o filho do Borges.
- Foi, sim, seô Major. O pobre do seu Vadico... Menino bom,
aquele!
- Você gostava dele, você trabalhou lá?
- Mas muito, seô Major... Coração de anjo... Gostava de todo o
mundo... Não deixava ninguém judiar com criação nenhuma... Ele queria ser
boiadeiro, queria, por toda-a-lei. Um dia, em que fizeram ele ficar aborrecido,
veio logo me procurar: - “Não vou para o colégio! Antes aqui, Raymundão, nem
que seja pisado pelas vacas, mas eu quero é ficar aqui com vocês todos!” - Ah,
nunca imaginei que ainda ia ver o menino morrer daquele jeito...
- Foi no campo, não foi?
- Pois foi na Laje do Tabuleiro, onde tem os cochos...
A gente dando sal com quina, por causa que, por perto, lá, estava
começando a aparecer peste. O gado fêmea todo reunido: as novilhas solteiras,
as vacas arrojando, as outras com as crias taludas, ou bezerrada miúda, de dias
só. Seu Neco Borges tinha vindo com a família, para apreciar. Seu Vadico
gostava demais do Calundu, e o zebu também gostava dele, deixava o menino coçar
o pêlo e bater palmada no focinho... Doideira, eu sempre achei. Zebu é bicho
mau, que a gente nunca sabe o que é que eles vão cismar de fazer...
- É mau, por causa que eles são tristes... Repara, só, no berro
que eles têm...
- Sim senhor, deve de ser, seô Major. O Calundu, não sei se o
senhor sabe, não batia em gente a pé... Ao depois, ele estava no meio da
vacaria mansa... Seu Vadico foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na
mão. A gente estava ali, com as varas... O boi alisava o menino com o focinho,
e até parecia gente, carinhoso. .. Quem é que havia de somar? O senhor sabe que
boi não entra na gente assim a toa, sem avisar: mesmo quando eles já estão
fazendo gatimanha, sapateando, abrindo terra e soprando em riba, a gente
precisa é de não apartar os olhos dos olhos deles...
- Toda a vida. Na hora de um boi partir na gente, os olhos mudam
de jeito e ficam maiores, parecendo que não vão caber mais nos buracos das
vistas...
- Pois eu juro, seô Major, que aquilo foi de supetão... Eu vi o
Calundu abaixar a cabeça... Parecia que ele ia querer mais sal... E, aí, de
testada e de queixo, ele deu com o menino no chão, do jeito mesmo de que um
cachorro derruba uma lata. Seu Vadico caiu debruço, com a cabecinha para dentro
das patas do touro... E ele nem pos o pé em cima: deu uma passada para trás, e
foi uma chifrada só. . Depois, o Calundu sungou a cabeça, e o sangue subiu
atrás, num repuxo desta altura:... !...
- Muito triste, Raymundão.
- Nós corremos, todos, mas não foi preciso tirar o zebu, porque
ele deu as costas, e foi andando para longe, vagaroso, que nem que não quisesse
ver o crime que tinha feito... Aquilo era sangue por todo lado, e o pessoal
gritando... Seu Neco Borges virou um demônio, puxou o revólver...
Mas seu Vadico, antes de morrer, falou determinado, que nem pessoa
grande: - “Não mata o Calundu, pai, pelo amor de Deus! Não quero que ninguém
judie com o Calundu!... “
- Um-hum!
- Seu Borges mandou levar para o seu Lourenço, na Vista-Alegre,
para ser vendido ou dado de graça... Aí eu disse que levava, porque só eu era
quem sabia fazer a simpatia do cambará. O senhor conhece? Pois eu juntei o
bicho com um terno de vacas mansas, montei no meu quartão castanho, e joguei um
raminho de cambará para trás: aquilo, o zebu me acompanhou, que nem um
bezerrinho correndo para o úbere da mãe... Eu falava: - Vamos para adiante,
assassino!... - Mas falava baixo, para ele não me entender... Não me deu
trabalho nenhum. Agora, quando chegamos lá no Saco-do-Sobre, então foi que eu
tive medo, porque a simpatia do cambará só serve para quando a gente está indo
na estrada... Fui gritando: - Abram as porteiras dos dois lados, abrir logo!.
.. - E emboquei e atravessei o curral, de galope, saindo da outra banda. Ele e
as vacas entraram atrás, e os vaqueiros fecharam tudo. Mas, de noite... Eu
pernoitei lá, e vi a coisa, seô Major. Ninguém não pôde pegar no sono, enquanto
não clareou o dia. O Calundu, aquilo ele berrava um gemido rouco, de fazer
piedade e assustar... Uivava até feito cachorro, ou não sei se eram os
cachorros também uivando, por causa dele. Leofredo, que era de lá naquele
tempo, disse: - “Ele está arrependido, por ter matado o menino”... - Mas o
velho Valô Venâncio, vaqueiro cego que não trabalhava mais, explicou para a
gente que era um espírito mau que tinha se entrado no corpo do boi... Parecia
que ele queria mesmo era chamar alguma pessoa. Fomos lá todos juntos. Quando
ele nos viu, parou de urrar e veio, manso, na beira da cerca... Eu vi o jeito
de que ele queria contar alguma coisa, e eu rezava para ele não poder falar...
De manhã cedo, no outro dia, ele estava murcho, morto, no meio do curral...
- As vezes vêem coisas dessas, que a gente não sabe, Raymundão.
- Isso, agora, eu acredito, seô Major. Sei de um caso que se
passou, há muitos anos, contado por meu pai, que quando moço foi campeiro de um
tal Leôncio Madurera, no sertão. Leôncio Madurera era um homem herodes, que
vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada, para matar e
tornar a tomar os bois. Pois meu pai contava que, quando ele morreu, e os
parentes estavam fazendo quarto ao corpo, as vacas de leite começaram a berrar
feio, de repente, no curral. Coisa que o garrote preto urrava:
- Madurera!... Madurera!...
E as vacas respondiam, caminhando:
- Foi p'r'os infernos!... Foi p'r'os infernos!...
... Tiveram de soltar tudo e de enxotar para o pasto, porque eles
não queriam sair de de-perto da casa. E meu pai contou que, de longe, a gente
ainda escutava a maldição deles, que subiam o caminho do morro, sem parar de
berrar:
- Madurera!... Madurera!...
- Foi p'r'os infernos!... Foi p'r'os infernos!...
... Arrepia as costas, mesmo para se contar...
- Medonho, Raymundão.
- Medonho, seô Major.
- Olha, Raymundão, daqui a pouco estamos chegando! Já se avista,
lá muito em baixo, o arraial: a igrejinha, boneca e branca, no tope do outeiro;
as casas, da Rua-deBaixo e da Rua-de-Cima; e a estação, com os trens parados,
no meio da fumaça das locomotivas.
- Pois é, Raymundão, eu acho que tudo vai mesmo bem. E a respeito
do Badu com Silvino, eu estou com você, que essa rixa dá em nada. Depois da
estrepolia com o zebu que o Badu topou, não ficou tudo em risadas?
- Sim senhor, seô Major. Levaram a coisa na brincadeira.
- Você acha que Silvino respeita muito o Tote, irmão dele?
- Até ontem, eu sabia que sim, seô Major. Mas aí eles tiveram uma
discussão, e estão sem falar um com outro.
- Você sabe por que, Raymundão?
- No certo não sei, seô Major, porque ninguém não escutou o que
eles falaram. Mas eu acho que foi por Silvino ter cobrado um dinheiro que o
Tote estava devendo a ele...
- Ho-hô-hô-hô!... Está direito,
Raymundão, tudo em ordem. Você me deu boa prosa e companhia... Agora, você pode
ir, e manda o meu compadre João Manico aqui, para desberganhar de montada com o
Francolim... Com Deus, Raymundão!
A um aceno do Major, se apressa de lá Francolim, escanchado em
cima de Sete-de-Ouros, que vinha, até então, desatual, na marchinha costumeira,
sem demonstrar cansaço, sem veleidades de empacar.
- As ordens, seu Major.
- Escuta, Francolim: agora eu quero ver se você sabe prestar bem
atenção nas coisas, para receber categoria de sujeito meu de confiança! Você é
capaz de me dizer o que é que o Silvino vai levando hoje, com ele, de bagagem e
mat'otagem?
- Ah, eu também já reparei, seu Major! - que é mais do que nenhum
outro: patrona cheia e meio-saco cheio, na garupa, afora outros trens,
embrulhados no capote... Se o senhor quiser conhecer o que é que está dentro, é
só eu ir lá perto dele, conversar, e daqui a pouco eu volto, eu conto...
- Precisa não, Francolim. Olha o João Manico chegando com o
cavalo. Destroca. Tem paciência, compadre Manico, este burrinho é hoje só. Até
já, compadre! Corre Francolim, deixa de ajustar esse gorro bobo, que você já está
bonito de mais. Galopa comigo, que é para o povo do lugar- ver que o meu
secretário é você...
Passam a ponte do ribeirão. Agora, um subúrbio do arraial, com as
cafuas mais pobres. Lavadeiras, espaventadas, de trouxas nas cabeças, como
lava-pés agredidas em seu formigueiro, fugindo com as ninfas e ovos brancos.
- Francolim, escuta: eu tenho um mandado sério, para você cumprir,
com toda a regra, porque sei que você é o meu homem para isso. Espera. Boca
fechada e olho aberto, na volta, Francolim. Eu resolvi ficar hoje no arraial,
com a família, e você vai vir com os vaqueiros, trazendo na algibeira
autoridade minha. Olha lá, Francolim, como é que você arranja as coisas, sem
ninguém desconfiar de nós.. .
- Nem que eu morra em nome da lei, na palavra do senhor, seu
Major!
A boiada entra no beco - “Tchou! Tchou! Tchou!”.. .
- “Contado, Leofredo?”... - “Falta nenhum!” - “Oi, gente, corta
aquele golpe, Badu! “
- É para vigiar o Silvino, todo o tempo, que ele quer mesmo matar
o Badu e tomar rumo. Agora, eu sei, tenho a certeza. Não perde os dois de olho,
Francolim Ferreira!
Os cavaleiros se entremeiam na manada, falsando clivagens,
fracionando o gado, para evitar embolamento. Num pataleio dianho, fazendo
espirrar lama vermelha, metem-se pela rua principal. E quatro vaqueiros tocam
adiante, dançando com os cavalos, trazendo-os nas esporas para ficarem firmes
nos freios, e gritando com o povo, a impedir seja esmagada alguma pessoa ou
criação.
Mulheres puxando meninos para dentro das casas. Portas batendo.
Gente apinhada nas janelas. Cavalgaduras, amarradas em frente das vendas,
empinando, quase rompendo os cabrestos. Galinhas, porcos e cabritos, afanados,
se dispersando sem tardança. E os vaqueiros, garbosos, aprumados, aboiando com
maior rompante.
Com um último trompejo do berrante, engarrafam no curral da
estrada-de-ferro o rebanho, que rola para dentro e se espalha, como um balaio
de laranjas despejado no chão. Mesmo com a meia-chuva, vinha o povo do lugar,
em fé de festa, para gozar o espetáculo. E começou o embarque - rico de sortes,
peripécias e aplausos -, que durou mais de hora e meia, até a boiada inteira,
lote a lote, desaparecer no bojo dos carros-jaulas dos dois trens especiais. E
pois, logo depois, encharcados, enlameados, cansadíssimos e famintos, os vaqueiros
saíram para comer, e beber, principalmente, porque força há na cachaça que
custa dinheiro da gente. E, com isso, deixaram todos de caber no dia, que rodou
e se foi, redondo e repleto, com a tarde a cair rente, uma tarde triste de
tempo frio.
Enquanto isso tudo, na coberta do Reynéro, ali perto, afrouxadas
as barrigueiras e tirados os freios, os cavalos descansavam. Longe dos outros,
deixado num extremo, no canto mais escuro e esquerdo do telheiro, Sete-de-Ouros
estava. Só e sério. Sem desperdício, sem desnorteio, cumpridor de obrigação,
aproveitava para encher, mais um trecho, a infinda lingüiça da vida.
De repente, na mata resseca do sonho, crepitou e chamejou o
barulho: houve homens, indesejados, se mexendo, como bichos-de-queijo na boa
espessura do silêncio. Eram os vaqueiros, voltando, em busca dos animais seus.
Chegaram, montaram, saíram. Penúltimo, Silvino, pegando o amarilho crinudo;
último, João Manico, pondo mão no poldro pampa; rindo e falando, muito, os
dois. Com o que, no prazo de um bom coice, e a não ser pelo mulo mísero
Sete-de-Ouros, ficou vazio o galpão. Era uma vez, era outra vez, no umbigo do
mundo, um burrinho pedrês.
Mas, agora, maior, mais real, direto - no lugar amplo e sem outras
formas - um homem sozinho: bebedérrimo, Badu. Pressentindo a vida ruim de
regresso, então Sete-de-Ouros abriu bem os olhos, e avançou os beiços num
derradeiro molho de capim.
- Que é do meu poldro? ! Ô-quê! ? Só deixaram para mim este burro
desgraçado?... Só porque eu fui comprar uma prenda para a minha morena...
Sete-de-Ouros mastigava, mais depressa. E pausa.
- Ei, que nós dois somos mesmo burros, hem, pandorgas?
E Badu caminhou e puxou o burrinho do cocho. Sete-deOuros se
aviou. O capim que ficara a sair-lhe dos cantos da boca foi encurtando e sumiu,
triturado docemente. Então ele dilatou as narinas. Trombejou o labro. E fez
brusca eloqüência de orelhas.
- Fecha essa queixada, cujo, que isto não é comida, não, é o
freio! E não me morde. Assim!
Sete-de-Ouros tornou a girar as vastas conchas, em circundução.
Bateu com a mão direita. E bufou, abanando a cabeça.
- Se tu me der um coice, eu te amostro! Escuta o Rio Preto, burro
bobo:
“Rio Preto era um negro
que não tinha sujeição.
No gritar da liberdade
o negro deu para valentão...”
- Deixa de chamar mais chuva, vá-s'embora, Badu! - gritaram, lá de
fora.
- Uai, ainda tem algum sobrando? Que é do meu poldro?
Sete-de-Ouros enrugou a pele das espáduas. Foi amolecendo as
orelhas. E fechou os olhos. Nada tinha com brigas, ciúmes e amores, e não
queria saber coisa a respeito de tamanhas complicações. Badu montou.
-
Vamos, briguélo!
A desproporção era grande, quando saíram pela rua, o homem num
ridículo de pernas, quase arrastando os pés no chão. Alguém vaiou:
- Uê, Badu, vai vender leite? Que é das latas?... Você está
carregando o burrinho por de baixo?...
- Cambada!
Dançando estão, dançando vão, as casas todas, em procissão. Mas,
aqui no fim do lugar, quem é este vulto de cavaleiro parado, na boca do beco do
Gentil da Ponte? Francolim.
- Estava esperando, seu Balduíno, por lhe fazer companhia...
- É... Ficam por aí, desse jeito, que eu até já ia passando fogo,
pensando que era sombração!...
- Mas o senhor não está desarmado? Como é que ia poder atirar, sem
ter garrucha nem revólver?
- Que me importa? ! É de sua conta?
- Não seja por mal, seu Balduíno, mas beber assim demais é
facilitar...
- Cataplasma! Para conversar comigo, como amigo, têm de me tratar
por Badu. E essa graça de “senhor”, “senhor”, também não me serve! Não gosto
dessa cerimônia...
- É o direito, homem. Eu hoje aqui não sou eu mesmo: estou
representando Seu Major...
- Nos cornos! Estou cuspindo nessa bobagem! Não quero prosa com
gente pirrônica... Vou com paz, mas vou ligeiro, sem conversa!
E com isso concordou Sete-de-Ouros, não por causa das rosetas das
chilenas - maus tratos não lhe punham posse - mas por sentir, aberto adiante, o
caminho de casa, enrolado e desenrolado, até à porteira do pasto: promessa de
repouso e de solidão. Mais e mais, daí a pouco, quando escorregaram as rédeas,
Badu pendeu para a frente, mãos perdidas, no cochilo da cachaça. Mas, mesmo
assim, o passo do burro rendia pouco, só em sorna progressão.
- Homem ignorante... Malagradecido... - resmungou, para si,
Francolim.
No covo da ipueira, o coaxar dos sapos avançava longe e voltava -
um... um... um... - como se corressem escalas em enorme teclado fanho. E,
sobressaindo, aqui e ali, parecendo provir de grande esforço, o berro solitário
do sapo-bezerro, regrosso
Escurecia. Sem se deixar ver, pouco de a uns poucos metros, ou de
detrás das moitas, alguém podia matar fácil, com um tiro ou dois. E Silvino?
Francolim deu de ombros e picou o cavalo, ainda atirando a Badu um olhar de
desprezo, ao passar por ele, no galope.
Mal adiante um quilômetro, alcançava os outros vaqueiros. Vinham
em fila índia, sopesando as varas. Cada um trazia, na capanga, bem agargalada,
uma garrafa suplementar. Cavalgada estúpida. Sem a boiada, seriam como almas
sem corpo. Sem a bebida menos conseguiriam tocar.
- Pára com essa cantiga, Leofredo!
- Uai, é o coco do Mestre Louco.. .
Estiara a chuva. Mas um vento fustigou os galhos da beira de
estrada, derrubando chuvisco.
- Já estão longe, aqueles...
- A boiada era boa.
Entravam na passagem do desbarrancado. Ainda havia um lusco-fusco,
na estrada; mas, passo ou olhada, logo em volta, dava no pretume, que ia
engrossando, imenso. Sinoca falou, para todos:
- Tomara que se acabe o tempo dos embarques. O que eu não gosto,
de trazer desse gado gordo, que vai para morrer... Quero mas é ir buscar boi
magro, no sertão.
- Que nem que o Martinho, por roubar mulher dos outros, em garupa?
- Para isso - que é só eu ter minha vontade! Você não sara de
implicar com a vida dos companheiros, Sebastião!
- Briga não, gente! Eu cá, por mim, gosto de ver é pessoa de
opinião, como o João Manico, que não vai buscar boiada brava, nem ali perto no
Pompéu.. .
- Ah, isso não é de pouca-vergonha nenhuma, e eu mesmo sei de mim.
Não gosto, não vou mesmo!... A gente deve de ficar é na terra sua, por não
precisar de ver muita coisa feia, que por este mundo tem...
- Essa cisma é só por causa de uma boiadá,', que estourou, é não,
Manico?
- Vocês não estão cansados de saber?! Aí já contei, tanta vez...
- Eu não sei, juro. Quem falou isso comigo foi o Tote, mas não
explicou nada como foi. Que é do Tote? O Tote! ?...
- Não está aqui, não.
- Está indo lá adiante, com o irmão... O, Tote! ?
- Eu aqui. O que é que estão querendo de mim? Já vou!
Mas, em vez de vir cá para o grupo, Tote continua falando com
Silvino, a gingar, como um tamanduá de abraço armado, ao sabor dos arrancos do
lobuno trotão:
É a última vez que eu aconselho, mano, para não pensar nessa
doideira que você quer fazer...
- Não adianta, meu irmão;. e hoje! Sangro o homem. Juro em
cruz!... `
- Silvino, você vai se desgraçar...
- Já estou desgraçado, mano... Agora, só mordendo o duro dele...
Deixa a gente passar o córrego e chegar na cava do matinho, no atalho... Faço o
meu serviço, pego a estrada da Lagoa, e calço de areia. . . O sujeito vem no
burrinho sem préstimo, e ele está tonto como negro em Folia-de-Reis... Cumpro,
e caio no mundo. Você não precisa de dizer que sabia de nada... O crime é
meu... Tenho sorte ruim!...
- Espera, mano. .. - sussurrou Tote, de repente. - Olha esse
sujeitinho aí de especula...
- Será que ele ouviu?
Não é capaz. Espera... Ei, Francolim, o que é que você vem fazer
aqui, sorrateiro? Até parece, está querendo ouvir a conversa dos outros?
- Não me ofende, companheiro, que isso é coisa que eu não faço. Só
estou é vendo que vocês dois já estão amigos outra vez...
- E é da sua conta, Francolim?!
Os três estacaram os cavalos.
- Tudo, hoje, é da minha conta, porque eu estou aqui é com
autoridade, estou representante de seu Major!...
Os outros vinham chegando:
- Oh, Tote, garante uma palavra minha, aqui para o João Maníco.
- Bem, pelo amor-de-deus vocês parem com isso, que eu não gosto de
frojoca com o meu nome no meio! Eu conto. Conto, mas é a derradeira vez.
Depois, não quero mais que ninguém venha falar nisso comigo!...
O grupo se uniu mais, todos querendo emparelhar com João Manico.
Os cavalos se entrepisavam os cascos.
- E então, Manicão?
- Só conto porque é o meu compadre Sebastião quem está pedindo,
mas não é para vocês fazerem teatrinho aqui, numa hora destas... E vão se
desembolando para lá, que eu acabo tendo de sujar algum, na hora d'eu cuspir!
- Isso se deu há muito tempo, Manico?
- Se duvidar, para mais de vinte anos. Não tinha tremde-ferro no
arraial... Ainda nem tinha casa-de-fazenda na Tampa...
- Onde é que você campeava então?
- Para o meu compadre seô Major Saulo mesmo... Só que ele era moço
e magro, nesse tempo, e a gente falava “seu Saulinho”... Ele já estava casado,
casado de novo, e terras dele eram só as do Retiro, mais uns alqueires de pasto
de brejo, no Pontílhão, que todo o mundo chamava só de Jatobá...
- Mas, como foi?
- Foi que a gente tinha ido por longe, muito longe mesmo, no fundo
do sertão, lá para trás dos Goiás... Era porque por todo lugar tinha dado
peste, e criação de chifre andava vasqueira, como nunca em antes. Pegamos uma
boiada das carepas: só bicho mazelento e feioso: bom quase que nenhum, muito
pouco marruaz taludo, tudo com focinho
seco, gabarro, com carrapatos de todo tamanho, cheios de bernes e
bicheiras, e com cada carne esponjosa de frieira entre as unhas, que era
isto:... !...
- Paz para mim! Feito bois sem dono...
Pois era uma gentinha magra mesmo héctica, tudo meio doente, que
eram só se lambendo e caçando jeito de se coçar em cada pé de árvore que
encontravam... Mas, para ser bravos, isso eles não estavam doentes, não, que
eram só fazendo arrelia e tocaiando para querer matar gente!...
Boi do mato, sem paciência...
E ir buscar coisa ruim assim, tão longe!
... Pois foi... Eu cá, por mim, nem que não era de desperdiçar
dinheiro meu com aquele refugo de
gado. Mas seu Saulinho - seô Major Saulo, pelo direito - sempre
foi estúrdio, pensando tudo por regra sua, só dele... Olha, assim uma vez, que
nós chegamos no sítio de um homem sem um braço, lá perto do Paracatu: no
curral, tinha uma vaca mestiça, meio pintarroxa... Quando nós íamos chegando,
ela berrou, um berro bonito de buzina, que era todo cantado e só no fim era que
gemia... Seu Major Saulinho estava alegre. :. Foi perguntando ao dono,
gritando, ainda em antes de desapear do cavalo: - “Quanto quer pela
clarineta?”. .. - “É cem mil réis”. .. - “Pois chego mais dez, pelo berro!”.. .
- Assim é que eu gosto! Dá respeito.. .
... É... Mas pagou à toa, à toa, sem precisão. Naquele tempo, isso
era bom dinheiro... Mas, como eu ia contando, a gente estava desgostosa com
aquele restolho de boiada má sem qualidade... Mas, o pior, Deus que me livre
dele, foi o menino... o pretinho...
- Que pretinho, Manico?
- Um negrinho, que tinha também. Assinzinho, regulando por uns
sete anos, um toquinho de gente preta... O fazendeiro que vendeu o gado pediu a
seu Saulinho para trazer, para entregar a um irmão, no Curvelo, e seu Saulinho
prometeu... A' pois, o tal pretinho era magrelo, com uns olhos graúdos, com o
branco feio de tão branco, que até mesmo, Deus que me perdoe, mas eu acho que
alguns pretos têm o branco-dos-olhos assim só para modo de assombrar a
gente!... E, aquilo, ele chorava, sem parar, e de um sentir que fazia pena...
Não adiantava a gente querer engambelar nem entreter... Eu pelejei, pelejei,
todo-o-mundo inventava coisa para poder agradar o desgraçadinho, mas nada d'ele
parar de chorar...
- Que inferno!
... E o gado também vinha vindo trotando triste, não querendo vir.
Nunca vi gado para ter querência daquele jeito... Cada um caminhava um trecho,
virava para trás, e berrava comprido, de vez em quando... Era uma campanha! A
qualquer horinha a gente estava vendo que a boiada ia dar despedida e arribar.
E era só seu Saulinho recomendando: - “Abre o olho, meu povo, que eles estão
com vontade de voltar!”
- E o menino preto?
...O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e
molhando minhas costas de tanta lágrima... Então eu falei: - “Olha os bois
também com saudade dos pastos lá da fazenda”. .. - Para que foi que eu fui
dizer isso! Ele abriu ainda mais no bué, e começou a gemer:
- “Ai, seu mocinho bom! Ai,
seu mocinho bom! Me deixa eu ir-s'embora para trás! Me deixa eu ir-s'embora
para trás!”.. .
... Bem que eu tinha pena, mas que é que eu podia fazer?
Fiquei calado, e deixei o pobrezinho ir gemendo. Quando ele viu
que não adiantava nada pedir, garrou só a exclamar:
- “Ai, seu mocinho ruim! Ai, seu mocinho ruim!... Eu só queria
poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no
rancho de minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve de
estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!”... E ele se abraçou comigo,
feito um doido, e eu nem podia deixar que ele visse minha cara, porque eu
estava com os olhos cheios de outras lágrimas, também...
...Nós tocamos cinco dias, sem sossego, porque não havia remédio
nenhum para o gado perder aquela tristeza. A gente via que via mesmo eles
resolverem, de repente, e darem para trás, todos juntos... De noite, ninguém
dormia direito: a gente tinha de acender muitas fogueiras no redor, o passear
com tição de fogo na mão, que era só no que eles atendiam, e assim mesmo muita
vez estavam não querendo obedecer!...
... Afinal, atravessamos um rio grande, e ficamos mais
descansados, porque agora decerto que eles iam tomar consolo e dar uma folga...
- E o negrinho?
- ...O pretinho, a gente perdeu a paciência com ele, e o Zacarias,
que era o capataz nosso, passou nele um aperto: - “Se você chorar mais,
dianhinho, eu te corto a goela, e amarro teu defuntinho preto em riba daquele
boi jaguanés!... “ Então o desgraçadinho arregalou muito os olhos, parou no
meio do choro, ficou quieto e não gemeu mais. Também, não quis comer nem nada,
naquele dia, e não dava mais resposta, quando a gente queria puxar conversa...
... De tardinha, a gente pousou num campo formoso, com aguada,
cheio de coqueiro buriti. Mas não tinha manga, nem malhador, nem pasto nenhum
fechado, e então tivemos de pôr o gado no encosto... Encantoamos a boiada numa
bocaina, e acendemos o fogo. - “Vocês hoje podem dormir... “ - disse seu
Saulinho. - “Só o Aristides e o Binga chegam, para vigiar por volta da
meia-noite”...
... Eu já vivia quase caindo, de tonto de sono; por isso gostei da
ordem de seu Saulinho, por demais. Comi meu feijão e sentei na raiz dum
pau-d'óleo, pitando e já meio cochilando... E foi aí, bem na hora em que o sol
estava sumindo lá pelos campos e matos, que o pretinho começou a cantar...
... Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga mais triste, e que voz mais
triste de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi tirar tanta tristeza,
para repartir com a gente... Inda era pior do que o choro de em-antes...
... E, aquilo, logo que ele principiou na toada, eu vi que o gado
ia ficando desinquieto, desistindo de querer pastar, todos se mexendo e fazendo
redemoinho e berrando feio, quase que do jeito de que boi berra quando vê o
sangue morto de outro boi...
...Mas,
depois, pararam de berrar, eu acho que para não atrapalhar a cantoria do
pretinho. E o pretinho cantava, quase chorando, soluçando mesmo... Era assim
uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim...
Mas, linda, linda como uma alegria chorando, uma alegria judiada, que ficou
triste de repente:
... “Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão... “
Aquilo saía gemido e tremido, e vinha bulir com o coração da
gente, mas era forte demais. Octaviano pediu a seu Saulinho para mandar o
pretinho calar a boca. Mas seu Saulinho tinha tirado da algibeira o retrato da
patroa, e ficou espiando, mais as cartas... Porque seu Saulinho não sabia ler,
mas gostava de receber cartas da mulher, e não deixava ninguém ler para ele:
abria e ficava só olhando as letras, calado e alegre, um tempão... E ele disse:
- “Deixa o menino chorar suas mágoas, que o pobre está com a
alminha dele entalada na garganta!”...
... Aí, então, eu comecei a me alembrar de uma porção de coisas,
do lugar onde eu nasci, de tudo... José Gabriel ficou cantando baixinho, para
ele mesmo só, e pelo que com os dedos, do jeito de que estivesse acompanhando o
canto do negrinho, numa viola qualqual... Arístides bebeu sua cachaça, que não
foi brinquedo, mas ninguém não falou, porque o Aristides se estava com
olho-de-choro... Até eu mesmo. Aquilo parecia: que a vaqueirada toda virando
mulher...
... E o pretinho ia cantando, e, quando ele parava ponto para
tomar fôlego, sempre alguma rês urrava ou gemia, parecendo que estavam
procurando, todos de cabeça em pé... Então, o Binga me disse: - “Repara só,
João Manico, como boi aquerenciado não se cansa de sofrer”. .. - Mas, aí a
gente foi cabeceando, em madorna. Sei de mim que ainda vi uma estrelinha
caindo, e pedi ao anjo uma graça, de voltar com saúde para a casa que já foi
minha, lá nas baixadas bonitas do Rio Verde...
... Então, eu acho que cheguei a dormir, mas não sei...
O canto do pretinho, isso havia!... E sonhei com uma trovoada
medonha, e um gado feio correndo, desembolado, todo doido, e com um menino
preto passar cantando toda a vida, toda a vida, sentado em cima do cachaço de
um marruaz nambiju!...
... Foi de verdade? Foi visão de sonho? Eu já estou velho, para
querer saber. Muita gente acha que sim, mas só tem coragem de dizer que não!
Sei lá... Mas - Virgem Santa Mãe de Deus! - acordei, de madrugada, foi com os
gritos do patrão. Que -é do gado?! Só o rastro da arrancada. Tinham arribado,
de noite!... Mas, ainda foi mais triste: no lugar onde deviam de ter ficado
Aristides mais Octaviano, nem cadáver! : os bois tinham passado por cima, e,
eles, mais os arreios que estavam servindo de travesseiros para eles dormirem,
estavam pisados, moídos, tinham virado bagaço vermelho...
- Já vi disso, Manico. É a mesma coisa que quando eles estouram na
estrada... Um assusta, com qualquer bobagem à-toa, e sai na carreira, e os
outros todos desandam atrás desse, correndo por informação, sem nem saber
direito do quê... Adianta querer cercar, quando eles desembestam?... Derrubam
paredes de tijolo, vão se matando uns aos outros.
- É, mas a pior de todas é a arrancada do gado triste, querendo a
querencia... Boi apaixonado, que desamana, vira fera... Saudade em boi, eu acho
que ainda dói mais do que na gente...
- Mas, conta o resto...
- O resto! O resto foi que nós levamos mais de uma semana, para
poder ajuntar as reses outra vez... Tinham espandongado por ali a fora, e a
gente foi achar uns atolados no brejão, outros de pescoço quebrado, caídos no
fundo das pirambeiras, e muitos perdidos no meio do mato, sem nem saber por
onde dar volta para acharem o caminho de casa... Outros tinham rolado rio
abaixo, para piranha comer. E, os que a gente pôde arrebanhar de novo, deram,
mal e mal, uma boiadinha chocha, assim de brinquedo, e numa petiçãode-miséria,
que a gente até tinha pena, e dava vontade de se botar a bênção neles e soltar
todos no sem-dono! São, são, não tinha quase nenhum... Eram só bois náfegos,
vacas descadeiradas, bezerros com torcedura de munheca ou canela partida,
garrotes com quebra de palheta ou de anca, o diabo! E muitos desmochados ou de
chifre escardado, descascado fundo, dando sangue no sabugo, de tanto bater
testada em árvore... Por de longe que a gente olhasse, mesmo o que estava
melhorzinho não passava sem ter muito esfolado e muita peladura no corpo... Um
prejuizão!...
- E o pretinho, Manico?
- Ah, esse ninguém não viu, nem teve notícia dele mais!... Coisa.
Deus que diga minha alma salva!... Por via dessa que houve, e de outras que
podia haver, é que eu não gosto de ser andejo, e fico quieto no meu canto. Quem
viaja por terras estranhas, vê o que quer e o que não quer!
- É isso mesmo...
- Bobagem! É andando que cachorro acha osso.
- Cachorro é quem quiser, mais a família! Não estou dando conselho...
Não zanga à toa, Manico. Todo gosto é regra.
- Chega, gente. O Zé Grande, que é que você deixou cair? Risca um
pau de fósforo...
Nada não, gente... Estou estranhando o chão. O caminho está certo.
- Isto eu sei... Desencosta, Juca!
- É cisma. Vou beber outro gole, para ficar com mais caráter. Os
animais se atolavam no terreno empapado da várzea, que parecia um pantanal.
- Oi, dianho!
Foi de repente: o cavalo de Benevides, que guiava a fila,
passarinhou. Os outros empacavam, torcendo os pescoços.
- O que é? Alguma coisa?
- É o desgramado desse bichinho espírito. Olha só como ele canta!
- João, corta pau! João, corta pau! Passa fogo, Bastião!
- Espera, gente. Não é de pássaro nenhum que os cavalos estão com
medo. É a enchente!...
- Não pode. Será?!
- Mas, como é que a enchente está chegando até aqui?
-
É ela mesmo! Olha como esfriou: isto é friagem de beira de rio.
- É mesmo, gente.
- João, corta pau! João, corta pau!
Mas a Fome passa longe, quase a quarto de légua... Só se a baixada
virou lagoa. .
- É manha dos animais.
- É mesmo...
- Não é, não, Leofredo... Escuta!
- É manha, sim. Quem estiver atrás, vá relando o ferrão, e eu
quero ver se cavalo anda ou fala porque é que não anda!
- Não faz isso, Juca, espera.
- João, corta pau! João, corta pau!
- Vamos deixar chegar o Badu, mais o burrinho caduco, que vêm
vindo aí na rabeira, minha gente!
- Isso mesmo, Silvino. Vai ser engraçado...
- Engraçado? ! É mas é muito engano. O burrinho é quem vai
resolver: se ele entrar n'água, os cavalos acompanham, e nós podemos seguir sem
susto. Burro não se mete em lugar de onde ele não sabe sair!
- É isso! O que o burrinho fizer a gente também faz.
- João, corta pau! João, corta pau!
- Dou meu voto. Dou meu voto, e estou falando pensado, em visto o
dever da continência que eu hoje tenho!
- Tira tua colher do tacho, Francolim! Isto aqui não é hora para
palhaçada!
- Respeita o nosso patrão, Sinoca, que seu Major me entregou a
responsabilidade dele, para tomar conta e determinar, nos casos...
- Bestagem... O-ô, Badu! Anda, homem!..
- Olha ele chegando...
- João, corta pau! João, corta pau!
- Lá vou eu, meus parentes!... Lá vou eu, suas injúrias-peladas de
vaqueiros sem boi nenhum!
E, falando, Badu se abraçou com o pescoço do burrinho, numa
ternura súbita...
- Eh, meu velho, coitado, que trapalhada! Estou doente, dei na
fraqueza, com este miolo meu zanzando, descolado da cabeça... Muito doente...
Estou com medo de morrer hoje... Mas, se você fosse mais leve, compadre, eu era
capaz de te carregar!...
- Veio com o como cheio... Está bêbado que nem gambá.
- Ei, Silvino, por que é que você está chegando para perto do
Badu, aí no escuro, coisa que você não deve de fazer?! Não consinto, não está
direito, por causa que vocês estão brigados, e ainda mais agora, que o outro
está tão bêbado assim!
- Tu arrepende essa boca, Francolim! filho de outra. Desarreganha,
sai por embaixo!... Eu vou aonde eu quero!...
- João, corta pau! João, corta pau!
- Não adianta bufar que nem tigre, Silvino, que eu estou falando
de paz, só na lei, no nome de seu Major!
- Não é caso de briga, Silvino, porque alguma razão Francolim tem.
- Alguma, não! Razão inteira, porque estou representando seu
Major, por ordem dele, e meu revólver pode parir cinco filhotes, para mamarem
no couro de quem trucar defalso!
- Deixa de valentia boba, Francolim!
- Juízo, gente! Olha o burro...
Sete-de-Ouros parara o chouto; e imediatamente tomou conhecimento da aragem, do bom e do
mau: primeiro, orelhas firmes, para cima - perigo difuso, incerto; depois, as
orelhas se mexiam, para os lados - dificuldade já sabida, bem posta no seu
lugar. E ficou. A treva era espessa, e um burro não é gato e nem cobra, para
querer enxergar no escuro. Ele não espiava, não escutava. Esperava qualquer
coisa.
E, quando essa chegou, Sete-de-Ouros avançou, resoluto. Chafurdou,
espadanou água, e foi. Então, os cavalos também quiseram caminhar.
Mas, aí soou o pio, que vinha da moita em cada minuto, justa:
- João, corta pau! João, corta pau!
E João Manico conteve a cavalgadura, e disse:
- Eu não entro! A modo e coisa que esse passarinho ou veio ficar
aqui para dar aviso para mim, que também sou João, ou então ele está mas é
agourando... Para mim, de noite, tudo quanto há,agoura!
- Perde o medo, Manico! Você não sabe que joão-corta-pau é o
passarinho mais bonzinho e engraçadinho que tem, e que nunca ninguém não disse
que ele agoura?! Isto, que não veio falar aviso, nenhuns-nada, ele gosta é de
se encolher dentro da moita, por causa do molhado, e é capaz que ele fique aí a
noite toda, dando seus gritinhos de gaita... Vam'bora!
- Não... Não vou e não vou, de jeito nenhum! Para este poldro me
tanger dentro d'água no meio do córrego?... O burrinho é beócio... E não vou
mesmo! Não sei nadar...
- Pois, então, eu fico com você, Manico, para lhe fazer
companhia...
- Eh, Juca! você não vem? Está com medo também?!
- Medo não, companheiro, dobra a língua! Estou meio ruim,
resfriado, e não posso molhar mais o corpo!... Vamos voltar, Manico, para caçar
um lugar alto, a donde a gente esperar que a sopa seque e que clareie o dia...
Manico tossiu e assentiu. Olhou. O último dos outros homens
cavalgava para dentro da escuridão.
E era bem o regolfo da enchente, que tomava conta do plaino, até
onde podia alcançar. Os cavalos pisavam, tacteantes. Pata e peito, passo e
passo, contra maior altura davam, da correnteza, em que vogava um murmúrio. A
inundação. Mil torneiras tinha a Fome, o riacho ralo de ontem, que da manhã à
noite muita água ajuntara, subindo e se abrindo ao mais. Crescera, o dia
inteiro, enquanto os vaqueiros passavam, levavam os bois, retornavam. E agora
os homens e os cavalos nela entravam, outra vez, como cabeças se metendo, uma
por uma, na volta de um laço. Eles estavam vindo. O rio ia.
De curto, Sete-de-Ouros perdeu o fundo e rompeu nado; mas já
tivera tempo de escolher rumo e fazer parentesco com a torrente. De trás, veio
o ruído de muitas patas, cortando água, e um chamado:
- Segura bem, Badu! Me espera!...
E a voz de Silvino:
- Arreda, Francolim! deixa eu passar!
Mas um rebojo sinuoso separou-os todos. O córrego crispou uma
sístole violenta. E ninguém pôde mais acertar caminho.
Se Badu estivesse um pouco menos bêbado, teria sido mais prudente:
seu a seu, porém, sentindo o frio duro nas coxas, apenas se agarrou, com força,
ao burrinho.
- Eli, aguão!...
Pendeu demais, seguras as mãos na crina. Cabeceou e molhou a cara.
Cuspiu. Vai, vai, que o burrinho avançava.
- Te vi, meu velho! O mundo está se acabando em melado!... - e
rogou uma praga imoral, porque os gorgolões lhe repassavam cócegas no queixo, e
tinha cãibras nas barrigas-das-pernas, tudo no desconforto de cruzar a cavalo
um rio fundo, sem ter firmeza nenhuma, pois a água, por si sozinha, levanta o
cavaleiro da sela, e o mesmo seria estar sentado numa plasta de angu mole.
- Ai, meu Deus, que nem beber não posso, que só disse copo e meio
em antes, garrafa e meia ao depois!... Vam'embora, burro meu!
Contra o dito, sem porquê, bom e melhor que Badu estava como
estava, que para córrego cheio mais vale homem muito ébrio, em cima de burro
mui lúcido. Progrediam, varando os rolos d'água. - Créu! Créu!... - guinchou um
bicho, nas vascas. - “Oi, até mutum-do-mato está vindo morrer aqui?! Não tem
asa, bobo?!... Ou será que é algum sariguê, de grito fino que nem
passarinh'?”... - O dilúvio não dava fim.
Sete-de-Ouros metia o peito. De enxurro a jorro, o caudal mais
raivava, subindo o sobre-rumor. O burrinho se encolheu, deu um bufo. Avançou
mais. Pesado, espadanando, pulou um corpo, por perto. - “São Bento me valha,
que aí vem jacarezão, caçando o que comer!” - O mundo trepidava. Pequenas ondas
davam sacões, lambendo Badu. Escurão. O burro pára. O mundo bóia. Mas
Sete-deOuros esperou foi para deixar passar, de ponta, um lenho longo, que
vinha com o poder de uma testa de touro. Desceu,sumiu. Em cima, no céu, há um
pretume sujo, que nem forro de cozinha. Noite ruim. Agora, atrás, passa um bolo
de folhas e galhos, danisco, que ainda agarra Badu, com uma porção de braços,
empurrando. Força de mão, para jogar para lá essa coisama! Paz, que já virou,
graça Deus, também. - “Me molhou todo, rasgou minha roupa, diabo!... Goiabeira,
pelo cheiro... Fosse um imbaré ou um pau de espinho, me matava! -. .. - Lhó...
lhó... lhó... - vão, devagar, as braçadas de Sete-de-Ouros.
Vestindo água, só saído o cimo do pescoço, o burrinho tinha de se
enqueixar para o alto, a salvar também de fora o focinho. Uma peitada. Outro
tacar de patas. Chu-áa! Chu-áa... - ruge
o rio, como chuva deitada no chão. Nenhuma pressa! Outra remada, vagarosa. No
fim de tudo, tem o pátio, com os cochos, muito milho, na Fazenda; e depois o pasto: sombra, capim e sossego... Nenhuma
pressa. Aqui, por ora, este poço doido, que barulha como um fogo, o faz medo,
não é novo: tudo é ruim e uma só coisa, no caminho: como os homens e os seus
modos, costumeira confusão. É só fechar os olhos. Como sempre. Outra passada,
na massa fria. E ir sem afã, à voga surda, amigo da água, bem com o escuro,
filho do fundo, poupando forças para o fim. Nada mais, nada de graça; nem um
arranco, fora de hora. Assim.
E descia mais porcariada, mal visível, de ciscos e gravetos;
desciam toros flutuantes, e corpos, mortos ou meio, de pêlo, de escama e de
pena, conviajando com a babugem e com os pedaços vegetais. Mas a enchente ainda
despejava e engrossava, golfando com intermitências, se retorcendo em pororoca,
querendo amassar cama certa para poder correr. Cada copa de árvore, emergente
ou afundada, cada grota submersa ou elevação de terreno, tudo servia para mudar
a toada das águas soltas. E, no bramido daquele mar, os muitos sons se
dissociavam - grugulejos de remoinhos, sussurros de remansos, chupões de
panelas, chapes de encontros de ondas, marulhar de raseiras, o tremendo assobio
dos vórtices de caldeirões, circulares, e o choro apressado dos
rabos-de-corredeira borborinhantes. Água que ia 'e vinha, estirando botes,
latejando, com contracorrentes, balouço de vagas, estremeções e retrações. Mas,
de repente, foi apenas uma pressão tesa e um grande escachôo. O frio
aumentou. Estavam no leito primitivo e
normal do córrego da Fome. Atravessavam a mãe-do-rio.
E ali era a barriga faminta da cobra, comedora de gente; ali onde
findavam o fôlego e a força dos cavalos aflitos. Com um rabejo, a corrente
entornou a si o pessoal vivo, enrolou-o em suas roscas, espalhou, afundou,
afogou e levou. Ainda houve um tumulto de braços, avessos, homens e
cavalgaduras se debatendo. Alguém gritou. Outros gritaram. Lá, acolá, devia
haver terríveis cabeças humanas apontando da água, como repolhos de um
canteiro, como moscas grudadas no papel-de-cola. A estibordo de Sete-de-Ouros,
foi o berro convulso, aspirado, de uma pessoa repelida à tona, ainda pela
primeira vez. Mas isso foi bem a uns dez metros, e cada qual cuidava de si.
Noite feia! Até hoje ainda é falada a grande enchente da Fome, com
oito vaqueiros mortos, indo córrego abaixo, de costas - porque só as mulheres é
que o rio costuma conduzir de-bruços... O cavalo preto de Benevides não desceu,
porque ficou preso, com a cilha enganchada num ramo de pé-de-ingá. Mas o
amarilho bragado de Silvino deve de ter dado três rodadas completas, antes de
se soverter com o dono, ao jeito de um animal bom. Leofredo, não se achou.
Raymundão, também não. Sinoca não pôde descalçar o pé do estribo, e ele e a
montada apareceram, assim ligados os dois defuntos, inchados como balões. Zé
Grande e Tote, abraçados, engalfinhados, sobraram num poço de vazante, com
urubus em volta, aguardando o que escapasse das bocas dos pacamãs. Mas o que
navegou mais longe foi Sebastião, que aproou - barca vazia - e ancorou de
cabeça, esticado e leve, os cabelos tremulando como fiapos aquáticos, no barro
do vau da Silivéria Branca...
Alguém que ainda pelejava, já na penúltima ânsia e farto de beber
água sem copo, pôde alcançar um objeto encordoado que se movia. E aquele um
aconteceu ser Francolim Ferreira, e a coisa movente era o rabo do burrinho
pedrês. E Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era
o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia que esta
o levasse de viagem, muito para baixo do lugar da travessia. Deixou-se, tomando
tragos de ar. Não resistia. Badu, resmungava más palavras, sem saber que
Francolim se vinha agüentando atrás, firme na cauda do burro. Aí, nesse
meio-tempo, três pernadas pachorrentas e um fio propício de corredeira levaram
Sete-de-Ouros ao barranco de lá, agora reduzido a margem baixa, e ele tomou
terra e foi trotando. Quando estacou, sim, que não havia um dedo de água
debaixo dos seus cascos. E, ao fazer alto, despediu um mole meio-coice.
Francolim - a pé, safo.
Badu agora dormia de verdade, sempre agarrado à crina. Mas
Sete-de-Ouros não descansou. Retomou a estrada, e, já noite alta, quando
chegaram à Fazenda, ele se encostou, bem na escada da varanda, esperando que o
vaqueiro se resolvesse a descer. Ao fim de um tempo, o cavaleiro acordou.
Bradou nomes feios, e começou a cantar um ferra-fogo - dança velha, que os
negros tinham de entoar em coro, fazendo de orquestra para o baile dos
senhores, no tempo da escravidão. Aí, os camaradas que dormiam no paiol grande
despertaram com a algazarra, vieram desmontá-lo, e carregaram com ele, para
curtir a bebedeira num jirau. Depois, desarrearam o burrinho.
Folgado, Sete-de-Ouros endireitou para a coberta. Farejou o cocho.
Achou milho. Comeu. Então, rebolcou-se, com as espojadelas obrigatórias,
dançando de patas no ar e esfregando as costas no chão. Comeu mais. Depois
procurou um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, entre a vaca mocha e a
vaca malhada, que ruminavam, quase sem bulha, na escuridão.
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